domingo, 25 de novembro de 2007

TRÊS POEMAS DE WLADIMIR CAZÉ

MIGRAÇÃO

Serpente similar
a raiz encolhida
escolhe o trâmite.


Serve de comer terra,
para não sentir dor.


ENGUIA

Víscera arisca, esguia,
vai a hidra, veia magnética.


GAIVOTA

Embora sobrevoe
avenida e praias
de várias cidades,
atravesse vales
situados ao longe
e só volte ao mar à noite,
a gaivota gaiata
avista apenas mapas.


WLADIMIR CAZÉ (1976) é escritor e jornalista. Um dos fundadores da editora cooperativa Edições K, publicou dois livros: "A filha do Imperador que foi morta em Petrolina" (cordel, 2004) e "Microafetos" (poesia, 2005), do qual os três poemas acima foram extraídos. Mantém o blog Silva horrida - Guia de cidades (www.silvahorrida.blogspot.com)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

POUCAS E BOAS COM....

NELSON MAGALHÃES FILHO


1-Bem, apesar de escrever você é artista plástico. Como é dedicar-se a estas duas artes?

Artes Plásticas foi o curso em que me formei na Escola de Belas Artes da UFBA, em 1883, pois sempre gostei de desenhar desde menino. Escrever foi uma coisa que veio do hábito da leitura. Minha tia possuía uma coleção “O Mundo da Criança”, e eu ficava assombrado com aquelas ilustrações e histórias extraordinárias. Como eu passava muito tempo sozinho, sentia necessidade de ficar reinventando minha vida besta numa cidade do interior, matando lagartixas e pulando os muros dos quintais alheios. Então, não me sinto um escritor, gosto apenas de me divertir com algumas bobagens. Até hoje não levo isso a sério, mas tenho muita paixão pelo que faço.


2-Leitura para você é hábito ou necessidade? O que gosta de ler? Há um livro que você considera indispensável?


Admito que não leio tanto quanto deveria, porque para se escrever bem é realmente necessário se ler bastante. Quando tinha 17 anos li “O Ovo Apunhalado” do Caio Fernando Abreu, e nunca mais fui o mesmo. Todos os bons livros são indispensáveis. Atualmente gosto muito do escritor colombiano Efraim Medina Reyes.


3-Artes plásticas. Como vai o panorama das artes plásticas na Bahia? Há tendências para uma vanguarda? Há diálogo entre os artistas no sentido de uma comunidade artística?

A Bahia hoje tem inúmeros artistas plásticos de talento construindo uma arte da maior expressividade, e que não deve nada a nenhum grande centro urbano do mundo contemporâneo. A associação de Artistas Plásticos Modernos está se reestruturando e, acredito num futuro promissor neste sentido. A gente precisa continuar lutando por mais espaços.


4-Um nome indispensável para o gênero na Bahia?

São vários: Sante Scaldaferri, Graça Ramos, Leonel Matos, Caetano Dias...



5-Agora dentro da literatura, a poesia é escolha ou é sina? Quais os nomes que você considera sinal de Bahia em literatura hoje?

Não acredito nessa coisa de sina. Há muitos escritores e poetas que eu gosto demais. Não daria para citá-los aqui pois poderia esquecer algum nome, e ai... Mas você pode dar uma olhada nos links do meu blog anjo baldio.


6-Da sua série de pinturas Anjos Baldios , que inclusive intitula seu blog, qual a proposta?Dentro do cromatismo o que se procura suscitar? Quais as referências dentro desta realização? Ou não há referências?

Nos últimos 20 anos venho investigando diversas técnicas através de espontâneas apropriações da arte infantil e dos esquizofrênicos, para elaborar pinturas dentro de uma poética “perversa” abordando aspectos de nossas vivências dentro deste violento mundo cotidiano. Então, eu procuro realizar essa abordagem sobre a desconstrução do imaginário infantil e dos marginalizados. Essas pinturas são interpretações pessoais desses estados acumulativos, construídos em camadas fragmentárias. Existe uma nova tendência da pintura que abusa do transbordamento em seu discurso estético que eu gosto muito. Posso citar como minhas principais influências o neo-expressionismo alemão, o movimento C.O.B.R.A, Iberê Camargo, Sante Scaldaferri, Donald Baechler. Francis Bacon, Egon Schielle, Pollock, Basquiat, etc.



7-Projetos?

Estou iniciando uma nova série de desenhos e pinturas para realizar uma nova exposição em 2008. Também estou trabalhando em alguns vídeos experimentais. E tomando aulas de guitarra para compor meus blues, já que toco muito mal.



8-Você ensinou por um tempo pela docência na escola de Belas Artes da UFBA. Como é ensinar algo tão complexo como a arte? Como foi sua experiência neste período?

Fui Professor-Substituto de Pintura II (2004-2006) e não achei tão difícil ensinar a pintar a figura humana, pois tive professores fantásticos como Ailton Lima, Juarez Paraíso, Graça Ramos, Márcia Magno, etc. Foi uma experiência inesquecível e tive alunos maravilhosos.



9-Dentro do meio artístico baiano como transita Nelson Magalhães Filho?

Estou sempre realizando meus sonhos. Fiz diversas exposições individuais e coletivas em vários estados, publiquei alguns poemas em alguns jornais e revistas literárias. Fui premiado várias vezes nas Bienais do Recôncavo do Centro Cultural Dannemann e nos Salões Regionais de Artes Plásticas da Funceb. Em 1999 fui contemplado com o Prêmio Copene de Cultura e Arte (atual Braskem). Também participei com um vídeo na última Jornada Internacional de Cinema da Bahia, dentro do Programa Nova Produção do Cinema Bahiano. Mas o importante talvez seja a crítica corrosiva do público.


10-Por fim, um livro, um filme, um disco e uma frase pra por na capanga e sartá no caminho. Viagem rumo incerto sempre?

Seria impossível responder a tudo isto, porque a arte como a vida é sempre imperfeita e está em permanente mutação. Poderia citar alguns autores que eu admiro como Rilke, Hilda Hilst, Rimbaud, Cortázar, Clarice Lispector, Henry Miller...

Adoro os filmes do David Lynch, Herzog, Glauber, Wim Wenders, Almodóvar...

Ouço o tempo inteiro Bob Dylan, Lou Reed, Tom Waits, Marianne Faithfull, Leonard Cohen, Nick Cave, Nico, Patti Smith, Chavela Vargas, P.J. Harvey... também Caetano Veloso, Lenine, Cazuza, Raul Seixas, Xangai, Elomar, Chico Buarque...

Agora a frase: tem uma do Rimbaud que acho demais: “A moral é a fraqueza do cérebro”.

Nelson Magalhães Filho é artista plástico e mantem o blog www.anjobaldio.blogspot.com

sábado, 17 de novembro de 2007

TRECHO DO ROMANCE UM RIO CORRE NA LUA,

DE RUY ESPINHEIRA FILHO


O prefeito soube pelo seu chefe de gabinete.

– Visagem? – perguntou o Dr. Fulgêncio.

– Sim, doutor.

– E em pleno dia? Ora, bobagem tem limite!

– Se é bobagem, é das grandes, doutor: me disseram que há um mundo de gente enchendo a Rua da Areia!

– É, tudo pode acontecer mesmo nesta vida, até visagem em pleno sol!

Bom, ele iria verificar. Fechou o volume que estava lendo, do seu colega de Medicina Anton Tchekov, e saiu. A Delegacia ficava no caminho, ele entrou. O tenente Evandival folheava uma revista velha e não sabia de nada.

– Uma visagem, doutor?!

– Foi o que o atrapalhado do Alcides me disse.

– Essa gente acredita em qualquer coisa.

– O homem só evolui na tecnologia, tenente. No resto, é o mesmo dos tempos de Adão.

– É, doutor... Vai ver, é algum palhaço de perna-de-pau anunciando circo.

– Espero que sim, estamos mesmo precisando de divertimento por aqui. Mas não duvido de que possa ser mesmo uma visagem.

– E o senhor acredita nessas coisas, doutor?!

– Não é questão de eu acreditar ou não, mas de se acreditar. Havendo quem acredite, sempre haverá... Talvez a única atitude sábia seja nunca duvidar de nada na vida, tenente. Porque ela é feita de alucinações sem fim, talvez até um pouco mais em Rio da Lua.

– Será mesmo, doutor?

– Não duvide, tenente.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A casa do meu pai

Na casa do meu pai
tudo é exigido

Obediência súdita,
quase cega

Me ensinou a mastigar
e a cuspir

Me ensinou a capinar
e a colher

Me ensinou a calar
sem discurso

A vida soletrada
na ponta de um lápis

A casa do meu pai
é o único país que conheço


THIAGO LINS (1978) é natural de Fortaleza (CE). Co-editor do blog.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Uma chuva de HAI-KAIS de Mônica Menezes


Hai-kai cotidiano

A poesia
escorreu pelo ralo da pia
enquanto eu lavava os pratos


Hai-kai para o muro

Para Sarah


A menina na janela
não vê o muro
seus olhos têm habilidades de firmamento


Hai-kai benjaminiano

Meu avô
é uma cadeira de balanço
vazia



Hai-kai quase seco

O extenso rio
da minha infância
tornou-se lama entre meus dedos

MÔNICA MENEZES. Poetisa sergipana radicada em Salvador.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

UM POEMA DE ÂNGELA VILMA.

CLARIVIDÊNCIAS

Tudo se percebe

nas frestas e passagens

em que janelas sabem

os risos dessas brisas.

Entre verdades intensas

o tempo desmente a vida.


ÂNGELA VILMA (1967) é poeta e professora. Mora em Salvador. Participou da coletânea Tanta Poesia (Banco Capital, 2006).

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Viagem ao Quelembe

Valdomiro Santana
In Pastelaria Triunfo


Já estou no bojo da madrugada. É o que me diz a aragem mais fria.

Os sons de que me lembro vêm lentamente, um após o outro: o ciciar do vento na folhagem, a vibração dos insetos, o piar de um curiango, o murmúrio de um córrego... E logo se misturam aos cheiros, gostos, imagens, tantas sensações de que é feita a fascinação do mundo da roça.

Parece haver um intervalo entre esse conjunto de sons e o que agora ouço, como se fossem chocar-se dentro em pouco, do mesmo modo que há um estremecimento quando um mistério se desvela.

Aqui, porém, neste pedaço do Recôncavo, me dou conta do que, sendo mistério, só se desvela para no mesmo instante se velar e assim permanecer mistério, nem maior nem menor, porque mistério não se mede.

É no intervalo da aproximação dos dois conjuntos de sons que minha infância, com seu fundo rural, deixa de ser o tempo que passou, como se um cinegrafista ainda estivesse registrando-a.

Deixo que fluam esses instantes luminosos do acaso, a encantada emoção de estar só, aqui e agora, e não em minha terra, conversando comigo mesmo. Sou um homem que revisita uma pequena cidade depois de 38 anos e resolve sair, à noite (por que à noite?), andando pelos arredores e pelos distritos e povoados do município, seguindo estes caminhos ladeados de mato, sob a lua escassa.

Não há, como receei, choque entre os dois conjuntos de sons. Imperceptivelmente fundem-se, polifonizam-se.

Ouço agora o crepitar dos gravetos e galhos secos. Fiz esta pequena fogueira, e junto a ela me aqueço, deito-me.

***
Dormi?
O dia desponta devagar neste meado de março. Há um restinho de neblina. De repente, outra lembrança. Eu, menino — o céu ainda escuro, lá no sertão, longe, no norte da Bahia —, andava numa estradinha de terra; cruzava a linha do trem e ia com um tio no rumo de um lugar chamado Gameleira para tirar o leite de cinco vacas. E no caminho ia sentindo o úmido cheiro das moitas de coirana, malva e assa-peixe. Umas vinte braças atrás do curral, um rio; e do lado de cá, na margem esquerda, seis pés de manga-espada; na outra margem, ingazeiras; e flanqueando uma trilha que subia para a serra, pés de café, plantados em 1921 pelo avô materno Joaquim, de apelido Sinhô, que morreu em 1933.

Onde estou?

Reconheço: isto aqui é São Roque. Guaí, antigo Capanema, fica para esta banda. A Vila de Nagé, do outro lado, depois daquele morro. Depois, Guapira e Coqueiros.

Ando e ando. Ali, vejo, Barra do Paraguaçu não é muito longe. São tantos povoados. Água Fria, Viração, Batatã, Campina, Imbaíbas... Vou em Ponta do Souza? Tanque dos Paranhos é uma lagoa.

Pego uma vereda. Pronto. Começou a festa dos sanhaços, curiós, bicudos, coleirinhas, bem-te-vis...

Ando. Torno a parar. Ali, bananeiras, uma plantação de mandioca. O terreno ondula, depois sobe. Ando. “O pasto de cima é o de Agapito. Lá, ele tem uma casa de farinha”.

***

Era aqui a porteira. Como grita, sem som nem sentido, este advérbio: aqui! A casa não existe mais, nem o pé de maçaranduba rente à roça de Zé de Salvino.

Aqui. Dispersaram-se em 38 anos as ressonâncias dos sete paus roliços dessa porteira e de seus moirões de cabiúna. Mas ressonância não é repercussão, aprendi com Bachelard, o filósofo da imaginação poética. Na ressonância, o espírito da imagem; na repercussão, a alma dessa imagem.

É a repercussão que agora opera a revirada do ser porteira, seu sopro, sua emanação. “Os diferentes nomes de alma, em quase todos os povos, são modificações derivadas do fôlego e de onomatopéias da respiração”, escreve Charles Nodier, citado por Bachelard num rodapé d’A poética do espaço. Em francês, inglês e alemão, por exemplo, alma é âme, soul, die Seele; e espírito — sprit, spirit, der Geist. Que diferença! E, no entanto, alma é uma palavra esquecida ou reprovada. “Antes errar com alma”, diz Unamuno, “do que acertar sem ela”.

Se a alma não tivesse o poder de inaugurar as coisas, de ser potência de primeira linha, a “forma” da porteira seria só conhecida, percebida, talhada num lugar-comum, um simples objeto para o espírito, o psiquismo. Na curva de 38 anos, e bem antes desse tempo, é a alma que vem inaugurar essa porteira, habitá-la, deleitar-se com ela, na muda verticalidade dos moirões, na sonora horizontalidade dos sete paus que abrem e fecham seu ser.

***

Agapito, Santa, sua mulher — e Irene, a filha, que fazia bonecas de pano.

Ando.

Então é isso a vida de um homem? Deixar no meio da semana uma cidade turbulenta e voltar 38 anos depois a um lugar que não é onde nasceu, palmilhá-lo sozinho à noite, devanear, deitar-se junto ao fogo, levantar-se, andar e andar, os sentidos todos prontos?

Onde estão Santa e Agapito, Irene e suas bonecas de pano?

Trinta e oito anos. Agora. Por que é elástica esta palavra?

Se minha mãe estivesse viva, diria zombando de mim: “É muito tempo para quem está esperando debaixo da chuva”.

Um entroncamento de veredas, e cada qual com sua cadência. Sigo por uma, que também me acolhe, aventureiro da solidão.

“Chegou bem na hora”, disse Agapito ao me receber na porteira. Subimos o pasto. “Só não repare que o rancho é pobre”.

Era um puxado da casa de farinha, tudo de pau-a-pique, feito por ele; e também os apetrechos: a roda com as manivelas e a correia de couro para acionar o rolo de dentes afiados onde se ralava a mandioca cevada e descascada; as gamelas, as arupembas com as palhas bem trançadas e o arco firme prendendo-as; a prensa e o cocho, o forno e o lajeado certinho da chapa, rodos, alguidares.

Fumegante e adoçado com rapadura, o café que Santa me deu numa caneca de flandre.

“Quer beiju?”

“Quero”.

“O da hora é que é bom. Agorinha faço um, enquanto o diabo esfrega um olho”.
Engraçada, Santa. Era de Poço Redondo, Sergipe. Enquanto fazia o beiju num alguidar, cantarolou:


Já passei por tanta coisa
Que tudo hoje me distrai
Pra Lagarto, Capela ou Propriá
Seu menino me diga
Se Rosinha vai ou não vai
Ô Rosinha, Rosinhá
Se vai, vai
Se não vai, venha cá
Ô lelê, ô lalará
Ô Rosinha, Rosinhá.


Perguntei que cantiga era essa; respondeu:

“Ah, isso é do tempo do ronca. Uma doida que cantava, lá em Porto da Folha. Joana Cangula, o nome dela. Já morreu. Nunca vi um lugar ter tanto doido. Minha avó era de lá, mas não era doida”.

***

Desde o anoitecer de ontem que ando por estes matos. Calculo umas cinqüenta braças daqui até onde era a porteira de Agapito.

Há muito não sei o que é um feixe de sensações tão rico quanto este. Foi agora, a partir do anoitecer de ontem, que ele se formou, ou veio se formando nessa lonjura do tempo, como um caleidoscópio invisível, girando por dentro de meus olhos, no fundo de meu ser, até eu intuir que o azul é a escuridão tornando-se visível? Na distensão de meus músculos? No gosto do café com beiju? Na alacridade dos pássaros? Nas vozes que evoquei há pouco? No cheiro entontecedor da manipueira escorrendo no cocho da casa de farinha?

Bebo do cantil um gole de cachaça. E continuo andando. Não vejo mais onde era a porteira de Agapito. Abaixo um dos fios de arame farpado e passo por esta cerca; a terra está limpa, encapoeirada, bem chovida, pronta para o plantio de milho e feijão. Quem é o dono? Ando. Noto que a colina, vista da curva da roça de Zé de Salvino, é maior do que eu supunha: é uma serra onde grande parte da cobertura vegetal está preservada. Já avisto o começo da escarpa; e escuto o que me parece a linha mole de uma melodia em que se misturam gemidos, bulícios, suspiros, gorgolejos. Este som é nítido, apesar da algazarra dos pássaros.

Ando mais. Paro. Estremeço de emoção. Só agora me lembro: eu me despedira de Santa e estava descendo o pasto — Agapito um pouco à frente para abrir a porteira, quando uma menina vinha subindo com um pote na cabeça. “É Irene”, ele disse. “Foi ver água no Quelembe”.

Meu Deus! Trinta e oito anos e reacende-se em mim o antigo e ainda corrente significado rural nordestino: ver é o mesmo que buscar.

Irene tinha ido buscar água no que só pode ser um riacho. É isto que agora escuto: um murmúrio. E tão nítido. Por mais que, no sopé da serra, farfalhe um bambual. Murmúrio que vem dali daquela várzea, coberta de capim-guiné rebrotando.

Terá minha imaginação se infiltrado em minha memória para que um som irreal se produzisse, o barulho da água no pote que Irene sustinha na cabeça há 38 anos? Ando. Bachelard de novo ecoa em minha cabeça: “Um valor vivo integra uma realidade. É preciso que todos os valores tremam. Um valor que não treme é um valor morto”. Sou então o que me fez estremecer há pouco: esta fronteira entre o barulho da água, associado ao brilho nos olhos de Irene, ao desenho da rodilha onde assentava o pote úmido e fresquinho por fora, e a realidade vista e sentida a fluir incessante em dois metros de largura, se tanto. Que mundo entre o som da água chacoalhando naquele pote e o da água a murmurar neste riacho!

Quelembe. Sussurro a linda linha intervocálica. Digo em pensamento este nome pueril e doce, guardado nas veredas desta viagem, em cada curva deste silêncio de 38 anos. Abaixo-me para vê-lo bem de perto; e, ao molhar as mãos em suas águas, torna-se pleno meu sonho acordado: num instante um folguedo mágico se tece dentro de mim, diante de mim.

Hipnotizado pela solidão, eternizo esse instante — eu, que já vi tantos córregos e todos eles se parecem, não consigo me lembrar de nenhum outro.

Córrego. Arroio. Riacho. O primeiro o de córrego é todo alegrinho; o primeiro o de arroio, que som redondo perfeito; e o a de riacho é pura claridade cantante. O r gemina-se, soando dobrado, rolado, em que a raiz da língua se aproxima da campainha (a úvula), fazendo-a vibrar. Sublinho cada uma dessas palavras; experimento a primazia do vocal sobre o sonoro; e, mais ainda, a alegria de enunciar Quelembe, sua particular e lúdica e generosa modulação.

Quase seis horas da manhã. Eu, que até o entardecer de ontem era um homem sem mais nada, pois cansado de tantos descaminhos, sedento de tanta coisa vã, encontro este amigo distante e solitário. Quelembe. Sua geografia única, seu nome, seu murmúrio, seus submurmúrios. Bebo sua água. Lavo meus olhos. E junto a ele respiro, repouso, como se fosse para sempre, neste calmo alento irisado pelo azul-opala do alto desta serra, pelos verdes desta várzea. Sou este calmo alento. E recomeço a viver.


Março, 2005

Valdomiro Santana nasceu em Campo Formoso, BA (1946). É jornalista e escritor. Cursa atualmente o mestrado em Literatura e Diversidade Cultural na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Autor dos livros O dia do juízo (contos), Literatura baiana 1920-1980 (ambos publicados pela Philobiblion, Rio de Janeiro, 1986), Pastelaria Triunfo (crônicas [Edições Cordel, Feira de Santana, 2005]) e A paixão da leitura (inédito). Organizou e prefaciou as antologias O conto baiano contemporâneo (Empresa Gráfica da Bahia, Salvador, 1995) e Melhores contos, de Wander Piroli (Global Editora, São Paulo, 1996). É um dos 44 participantes (entre os quais, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Aníbal Machado, Rubem Braga, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles e Luiz Vilela) da coletânea Trabalhadores do Brasil — Histórias do povo brasileiro (Geração Editorial, São Paulo, 1998, organização e prefácio de Roniwalter Jatobá).

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O BALÃO AMARELO

A feira cobria toda a extensão da praça. Homens, mulheres e crianças comendo, comprando, vestindo, experimentando. Os carros no estacionamento subiam uns nos outros, gritavam. Casais se encostavam em árvores, encolhiam-se em bancos. A lua acolhia e iluminava. Meu bem vinha caminhando ao meu lado quando parou e anunciou que precisava fazer uma ligação. Assenti, feliz que estava com o novo anel no dedo, imitação de aliança quase igual à dele. Da cadeira esquecida numa barraca, eu o olhava na fila, aguardando gente apaixonada falando distante. E acompanhava a movimentação colorida e alegre que se entrelaçava à minha frente. Próximo, pais afoitos continham meninos diante de um homem que enchia de gás balões coloridos. Era um rapaz e não se inquietava com os pedidos e protestos tenazes das crianças, apenas baixava a alavanca quando a boca do balão estava encaixada no pistom. Provavelmente tinha filhos e vendia balões para sustentá-los. Meu bem, paciente, após a espera na fila, finalmente conseguiu chegar ao orelhão. Mordi os lábios. O rapaz enchia os balões um a um. No final, dava-lhes um nó, entortava, torcia, até que adquirisem uma forma engraçada qualquer. Quando começava a esculpir um balão amarelo longo como uma cobra, este teimou e desafiadoramente se desprendeu de suas mãos. Meu bem sorria longe, o fone entre o rosto e o ombro e uma das mãos no bolso do jeans. O balão amarelo dançava lento no vácuo. Estalei os dedos. Meu bem agora falava animado. Eu não o ouvia. De repente parou, deteve os olhos em mim e se virou de costas. Procurei o balão no céu. Ele já avançava sobre os postes de luz improvisados. E recordei da estranha manhã em que eu era muito pequeno e mal tinha aprendido a andar. Estava só, na frente da nossa casa, no meio da rua, numa ladeira. No final, o Lago. A cidade era uma armação desdentada e nós ainda morávamos em casas coletivas de madeira, próximo ao Paranoá. Tive medo de tropeçar, cair, rolar e parar dentro das águas do lago. Estava só e ainda hoje não sei como havia chegado ali nem como fiz para sair de lá. Eu não sabia falar e o medo paralisara meu choro. Sentia que uma fatalidade me levaria a cair, rolar e parar dentro das águas para morrer afogado. Não sei como saí. O balão amarelo ganhava altura e diminuía de tamanho. Meu bem virou novamente. Ele falava e eu reparava no quanto ele era forte, no quanto me inspirava segurança e proteção. Fez um aceno para que eu mantivesse a calma. O balão estava agora quase no meio do céu. De alongado, tornou-se redondo. Redondo como a bola que meu pai me jogava para que eu chutasse desajeitado. Estávamos na areia e alguns colegas e vizinhos brincavam conosco. Eu não sabia chutar direito, dava com os pés nos montes e reentrâncias da areia e via os outros rir. Mas meu pai não ria, insistia e jogava a bola para mim. Eu errava e não me sentia ridículo por errar. O balão não era mais amarelo. Virara um ponto branco igual às estrelas. E como estrela se apagou no mistério da noite. Eternizou-se. Meu bem desligou o telefone e veio em minha direção. O tempo era não mais que uma mentira, a vida tão simples quanto passear na feira e pedir um doce, alcançando com o coração o que anos de esforço e tentativas não me deram, sendo eu um pequeno balão amarelo a fugir de hábeis mãos, ilustrar o escuro do céu e saber que nada era tão importante quanto estar ali, ao lado do meu bem, considerando como um tesouro o anel de brilho falso apertado no dedo.


Lima Trindade
é autor de Supermercado da Solidão (romance, LGE, 2005) e Todo Sol mais o Espírito Santo (contos, Ateliê, 2005). Além disso, edita a revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br). Este conto integra o livro Corações Blues e Serpentinas, publicado em outubro de 2007.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Poemas...Simulação....Dois Poemas assim...


ALEGRIA

alegria de uma linha, uma palavra, uma letra;
um traço que esgota a mão, fere a face,
esgana a gorja; o desastre a perseguir o
desejo despido da coragem que mostram
os verdadeiramente capazes (é a realidade
pura escalando o mundo que se mostra nos
que escrevem); esses se escolhem e acolhem
o irresistível, embriagados de vida e vodca;
jamais – no entanto – se escreve acompanhado,
leva-se junto mundos, pulsos, vultos de um
perto muito distante, a necessidade
aleatória dos nossos familiarmente estranhos
(alcançam-nos na maior das solidões
deserto povoado da escrita); escreve-se
solitário, mas nunca sozinho; uma turba de
almas nos atravessa, e a força de existir aperta
os estreitos laços da mais incompartilhável das
experiências; é acompanhado de si mesmo
que se descobre o preço irrespirável da alegria


DESTINO IMPURO

o leopardo acelera sua máquina predadora
contra a fome que morde, o antílope
na posição de presa foge veloz para os braços,
o zangão à beira do gozo – à beira da morte,
à beira da abelha-rainha – sabe a alegria,
força, destino. tantos corpos no corpo,
tantos vôos no vôo, tantas vidas, um norte –
mestiço de impulso impuro. na hora
das coisas cruéis, decisivo é ultrapassar
a planta carnívora do medo para flertar com
a alegria do mundo na sua fulgurante desaparição.


Sandro Ornellas (1971) nasceu em Brasília-DF e mora em Salvador-BA. Publicou os livros de poemas SIMULAÇÕES (1998, Salvador, Fundação Casa> de Jorge Amado, Prêmio FCJA/COPENE para autores inéditos) e TRABALHOS DO CORPO (2007, Rio de Janeiro, Letra Capital). Também é professor de literatura na UFBA.