sexta-feira, 29 de junho de 2007

Com a Palavra...

GUSTAVO RIOS
1) Por que você escreve?

Não há uma resposta pronta. Nem única. Creio que seja algo entre querer ser eterno – pura vaidade, já que o medo da morte não assola caras com trinta e poucos, suponho -, e saber que de outra forma ninguém entenderia a minha confusa, desarticulada e doce visão de mundo.

2) O que você gostaria de escrever e por quê?

Um longo romance. Pra poder contar, de forma honesta, a história de todos os grandes caras e garotas que mudaram minha vida. No livro, eles seriam retratados dentro de suas gigantescas existências. Chorando, sendo felizes e inconseqüentes, trepando e vendo os dias nascerem. Como belos anônimos. Que fazem a história andar a passos largos. Pode parecer pretensão. Mas é a mais pura verdade.

Gustavo Rios nasceu em 1974. É baiano e mora em Salvador. É autor do livro de contos O amor é uma coisa feia, lançado pela editora 7 letras. Escreve regularmente nos blogs www.cozinhadocao.blogspot.com e http://feioamor.zip.net.

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Singularidades de uma jovem Poeta (2)

Retalhos

A escuridão rasga
me larga pela casa.

Sou pedaços
Retalhos pretos, brancos

Monte
num canto vazio
duma parede fria.


Pessoa

O Nada é o pouco mais de tudo
O Tudo é o muito menos mais
O Mais é o mero pouco nada
E ambos
São apenas Isso
Nada mais.



ALOMA GALEANO(1985) é estudante de Letras Vernáculas da UEFS. Admira Gabriel Garcia Márquez e outros mestres.

segunda-feira, 25 de junho de 2007

"Perfil" (12)


FIM DE LINHA



I

Logo que o ônibus despontou no horizonte turvado de fuligem, Nelson fez sinal. O estômago queimava. Investiu na última tragada de um cigarro que ameaçava queimar-lhe também a ponta dos dedos amarelados. Abriram-se duas covas nas proeminentes bochechas, apertaram-se os olhos amendoados.

Era o último cigarro da última carteira. Quando muito se espera em filas, as tragadas são mais fundas e rápidas.

Antes, costumava reclamar do banco. Os clientes chegavam no seu caixa, de quando abria até fechar, e lhe jogavam os depósitos, cheques, fichas de compensação e contas, um após o outro. “Muito obrigado, senhora”. “Um instantinho, por favor”. “Como tem andado?”. “Não se incomode, eu preencho pro senhor”. “Olhe, está faltando quinze”. “Um minuto, não tenho troco pra cem, vou pegar noutro caixa”. Dentro, não podia fumar.

Agora que estava livre do banco, ou, melhor dizendo, que eles haviam se livrado dele, não dispunha de mais dinheiro para comprar cigarros. Além do dinheiro da passagem, só restaram vinte e cinco centavos do seguro-desemprego. O suficiente para comprar um picado, não fosse o cego ter-lhe suplicado o trocado. Desajeitado, não teve como se esquivar. “Cego maldito!”, pensou com raiva.

O ônibus surgiu e parou mais à frente de onde estava. Nelson jogou a guimba ao chão e se arremessou num trote frouxo para dentro.

O sol declinava no vidro do pára-brisa e, como num jogo de espelhos, se duplicava nos grossos óculos do motorista. Em breve, anoiteceria.

Estendeu os olhos mais para o interior. Os passageiros que estavam em pé formavam uma colorida aléia de ternos, jeans e saias. Girou a roleta sem olhar para o cobrador, deixou o vale-transporte como espremido das mãos e, abrindo espaços, zuniu até um assento vazio, no fundo. “Que sorte!”. Hesitasse, outro teria tomado o lugar. Sentado, sentiu irreprimível felicidade, tão cheio estava de um monte de coisas que se acumulavam e o privavam de pensar em si mesmo, ficando tudo com um gosto de desgosto, nem amargo, nem doce, porque dele não se acentuava nada, como se a sua vida não tivesse importância e ele não desse importância para a vida. A mulher que pensava amar, amava a um outro. E ele nem mesmo acreditava que ela amasse aquele babaca de verdade. Que era um babaca e tinha carro e casa própria. Na verdade, um apartamento no qual ele dizia comer uma porrada de meninas. Nelson, um cara sem lar e sem emprego, poderia dar algo de si para alguém? Algo que não fosse sua falta de vontade e inépcia em considerar o mundo? É bem verdade que lar ele tinha, apesar de não ser de fato seu, mas alugado. Setenta por cento do seguro-desemprego era gasto em aluguel. E quando alugamos algo, aquilo passa a ser nosso enquanto pagamos. Pensava nisso quando seus olhos pesaram e ele começou a dormir, levado pelo carretel de pensamentos. O chouto do ônibus o embalava.
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II


Despertou com a sensação do corpo formigando e a surpresa de não estar mais em movimento. As sombras lentamente abandonavam seus olhos, recaíam tímidas nos assentos. Percebeu-se só. Primeiro, o sentimento de embaraço. Depois, o esforço para localizar-se. “Idiota”, sussurrou para si. Em seguida lembrou que o mesmo já se sucedera com outras pessoas, que muito vira e rira das pessoas que adormeciam nos coletivos. O pescoço pendendo sobre o ombro ou sobre o peito e o rosto estampando uma feição ridícula. Levantou. Ainda não escurecera totalmente, tudo afigurava-se sem contornos, apagado, fugidio. A paisagem misturava-se à sujeira das janelas e se perdia em pontilhados e manchas.

O ônibus não estava em nenhuma estação, em nenhuma rodoviária, em nenhum estacionamento. Simplesmente parara numa clareira. Quatro ruas a cercavam e formavam um quadrado, perto uns cem metros uma da outra. Como nunca seguira aquela linha até o seu final, ficou a pensar que lugar seria aquele e onde poderiam estar o motorista e o cobrador. Certamente voltariam. O ônibus deveria ter quebrado, os passageiros levados para outro veículo e o motorista seguido atrás de um guincho. Mas se assim era, porque ninguém o acordara para acompanhá-los?

Ficou quinze minutos sentado, fazendo conjecturas. Finalmente resolveu sair, decidido a tomar nova condução para casa. Forçou suavemente as portas traseiras e pôs-se em liberdade.

Fora, pode observar as ruas com maior atenção.

Eram rigorosamente iguais. O chão era de uma terra acinzentada batida e as casas todas de alvenaria. As cores, de um tédio mortal. Apenas uma janela e uma porta de madeira pintadas de verde compunham as fachadas. As paredes, brancas. Não se viam plantas ou adornos quaisquer que as distinguissem. Também não havia postes de luz próximos, nenhuma iluminação artificial. Nelson sentiu-se também nu e rapidamente percorreu o corpo com os olhos.

Usava uma calça jeans azul bem desbotada, uma camisa de algodão branca com botões e um tênis barato, sem meias. Talvez fosse por isso que não conseguira a vaga de digitador no escritório da W&W, não bastava sua extrema velocidade no teclado.

Começou a andar e se meteu numa das ruas, disposto a encontrar um ponto qualquer, já que tudo lhe parecia sempre impessoal e repetitivo.

Nisso, viu aproximar-se um senhor de aspecto bem bonachão, de barba e bigodes. Sorriu ao notar que o estranho se vestia parecido com ele, apesar de apresentar alguma diferença nos detalhes. Usava uma calça de tergal clara, talvez bege, e uma camisa azul com botões aberta na barriga, deixando entrever o orifício do umbigo. O calçado era um sapato mocassim muito desgastado. Não obstante, sentiu-se seguro para lhe pedir informações.

Articulou a primeira frase e esperou por uma resposta. O senhor, sem mesmo parar, fitou-o, mudo. Uma grossa lágrima rolou pelo rosto macerado, embebendo o bigode meio ensebado e grisalho e deixando Nelson em estado de estupor.

“Que porra é essa?!”, sacudiu a cabeça ligeiramente aturdido, ao passo que o senhor se distanciava. “Será surdo?... Maluco?”.

Continuou em frente.

A rua estava sombria e solitária. Uma luz pálida e rala bruxuleava de uma janela, exibindo a silhueta distorcida duma pessoa como num filme de Murnau. Era uma velha. A parca luz denunciava um semblante grave e austero. Trazia um lenço vermelho à cabeça e apoiava o queixo com uma das mãos, enquanto a outra se espalmava sobre a testa. Era uma testa por demais enrugada, e uma face inteiramente escalavrada. Nelson sentiu-se velho também. A voz dele escorregou num fiapo de interrogação. “Dona, que lugar é este? É bairro novo? Não vi nenhuma placa”. A velha se manteve indiferente. “Como posso fazer para pegar um ônibus?”, acrescentou sem vontade. A mulher arregalou as pálpebras finas e moles e, numa expressão mais que melancólica, mais que tristonha, deixou cair uma lágrima sobre o rosto estático, frio e copiosamente sulcado. Esta gota, tão rala e magra, salgou o coração de Nelson e fê-lo achar o ambiente e as ruas mórbidos. O desespero de não compreender aquela dor gratuita, magna e impenetrável, misturou-se às escuras tendências de Nelson para uma lugubridade interior. Se continuasse a ver aquela face tétrica da morte, desfaleceria ali mesmo. Fugiu numa urgência presa e oprimido pelo terror da visão horrorosa.

Desse modo, correu. Correu e correu por outras ruas idênticas àquelas, que agora emitiam um odor pestilento. Crianças perambulavam em algumas delas, e, mesmo as crianças não brincavam ou esboçavam menor sinal de alegria. Ficavam laconicamente paradas ou seguiam os adultos como robôs.

Evitando de olhar uns para os outros, aquelas almas aprisionadas causaram a impressão a Nelson que ele talvez estivesse morto, ou que a loucura houvesse se abatido sobre ele e estivesse ainda no ônibus em que subira. Lutava para achar uma explicação e não conseguia.

Aflito, de todos que ousou inquirir recebeu a mesma dolorosa e inexpugnável lágrima. Tornou-se um desgraçado como os demais. Não se aventurou mais a olhar para ninguém, contentou-se resignadamente com o seu destino tortuoso. E, assim, desfila pelas gretas daquela terra cinzenta. Se uma outra vítima do misterioso carro vem do crepúsculo e lhe toca nervosamente o ombro, ele apenas se vira para ela e deixa que a gota sulfurosa lhe queime a face machucada.
LIMA TRINDADE, brasiliense radicado em Salvador, é escritor e editor da revista virtual Verbo21(www.verbo21.com.br). Autor da novela Supermercado da Solidão (LGE, 2005). Conto extraído do livro Todo Sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005).

sexta-feira, 22 de junho de 2007

Com a Palavra...

RUY ESPINHEIRA FILHO

1) Por que você escreve?

Escrevo porque escrevo. Não há outra explicação, se esta é uma explicação. Mário de Andrade dizia que o artista é um fatalizado. É o que eu também acho. Ele nasce assim. Não é uma opção: é uma condição.

2) O que gostaria de escrever e por quê?

Eu não gostaria de escrever nada: quero apenas poder continuar escrevendo o que vier. Nunca planejo nem sei o que vou escrever, em literatura (ensaio literário é outra coisa). Em fevereiro deste ano eu pensava que apenas prosseguiria produzindo poemas - e eis que de março para cá escrevi um romance! A vida dos autores é muito cheia desses inconvenientes...


Ruy Espinheira Filho (1942)
, nascido em Salvador, é autor de mais de 20 livros, divididos em vários gêneros, como poesia, romance, novela, ensaio e crônica. Estreou em 1974, com Heléboro. É professor do Instituto de Letras da UFBA e membro da Academia de Letras na Bahia.

quarta-feira, 20 de junho de 2007

Da equipe (4)

O NÁUFRAGO

Todos sabem
Que escrevo

Mas sei menos de mim
E de outros

Quando escrevo
Penso que escrevo

Daí desperto,
E apenas espero


Thiago Lins(1978) é natural de Fortaleza - CE. Graduando em Letras Vernáculas. Co-editor do blog.

segunda-feira, 18 de junho de 2007

"Perfil" (11)

"TRANSA"


"Nove entre dez estrelas de cinema me fazem chorar". Quem disse que eu não curto algumas frases de efeito? Tenho também minhas recaídas e alguns gostos sofisticados. Aliás, muito além das frases de efeito, gosto de musiquinhas desconhecidas e ininteligíveis. É como uma necessidade de complicar mais a vida. Ou embelezá-la; quem vai saber?
Sim, eu ouvia um disco do Caetano...
Quando você ligou naquela madrugada, com sua voz dissimulada, estranhei a repentina vontade de "transar" comigo. Mesmo assim deu tesão. Apesar da sua previsível falsidade. Acabei topando somente por causa de minha ereção. Só por ela, pois o que havia de amor estava encerrado. Morto há muito tempo.
Eu te avisei. Por isso não haverá flores nem vinho tinto. Quando você falou em "pintar no meu apê", apenas repeti a música do Caetano - a que fala sobre artistas de cinema - e esperei. Além do mais, você usou umas gírias bastante antiquadas - "apê", "transa" e "pintar" são gírias de bicho grilo de merda que vive num casamento também de merda.


Alguns enigmas surgiram para mim nessa noite: esse disco do Caetano não tem nenhuma referência, é desconhecido e doloroso; e você me falou que eu "comia pelas beiradas". Outra gíria antiga, você se referia às minhas infrutíferas cantadas de meses atrás. Duas perguntas sem resposta. Algumas coisas, incluindo suas perguntas, não valem o mínimo esforço. Mais uma vez a música do Caetano. É uma boa música...
Não quero uma palavra que não seja obscena quando você chegar aqui. Termos chulos. Cheios de obscenidades: putaria, para ser mais claro. Vamos incrementar a coisa, se é para se consumir nesse fogo e sacanear os outros. Sem flores e vinho tinto nesta tua vingança de teu marido.
Para você só minha ereção, lembranças tristes e alguns comentários sobre os mistérios contidos nesse disco. Para te confundir e te entediar. E depois que eu gozar da maneira mais sacana possível, quero ficar só. Com o disco do Caetano. E a música que fala sobre a emoção de ver a Brigitte Bardot resplandecente numa tela de cinema.


Gustavo Rios nasceu em 1974. É baiano e mora em Salvador. É autor do livro de contos O amor é uma coisa feia, lançado pela editora 7 letras. Escreve regularmente nos blogs www.cozinhadocao.blogspot.com e http://feioamor.zip.net.

sexta-feira, 15 de junho de 2007

Com a Palavra...

WLADIMIR CAZÉ
1) Por que você escreve?

"(...) na tentativa de reter a correria do tempo, a areia impermanente em movimento" (trecho de meu romance in progress). Meu texto busca dar forma fixa a acontecimentos reais ou imaginários, congelar instantes em poesia, conto, crônica, reportagem. Publiquei em 2004 o folheto de cordel "A filha do Imperador que foi morta em Petrolina" (Edições K, 600 exemplares), ficção em versos que se passa na época da proclamação da República. Em 2005, lancei "Microafetos" (Edições K, 300 exemplares), série de 44 poemas que investigam a interface entre natureza e tecnologia no cenário contemporâneo. Mantenho o blog "Guia de cidades - Descrição prática e poética do território ocupado" ( http://www.silvahorrida.blogspot.com/), que registra meu dia-a-dia e minhas leituras. Essa produção tende a uma reflexão sobre a passagem do tempo e parece ter a intenção, antes involuntária e agora cada vez mais consciente, de perpetuar a fugacidade da vida, contrariar nossa marcha inexorável para a morte.

2) Que livro gostaria de escrever e por quê?

O livro que estou escrevendo, o único que gostaria de escrever neste momento. Conta a história de um sertanejo que se muda para uma grande metrópole pós-industrial. Essa foi a forma que encontrei para digerir os 3 anos e meio que vivi em São Paulo, aquela cidade antropofágica zoofantástica.
Wladimir Cazé (1976) é escritor e jornalista. Começou a publicar literatura na internet em 2001, no e-zine K (ou K-zine). Junto com Patrick Brock, Delfin e Marcelo Benvenutti, é um dos fundadores da editora cooperativa Edições K, pela qual publicou dois livros: "A filha do Imperador que foi morta em Petrolina" (cordel, 2004) e "Microafetos" (poesia, 2005). Mantém o blog Silva horrida - Guia de cidades (www.silvahorrida.blogspot.com)

quarta-feira, 13 de junho de 2007

Dados de um jovem poeta

POEMETO N. 3

Dois amantes,
após meio tempo juntos:
duas estrelas inscritas
na escuridão do espaço,
brilhando ao mais puro acaso.

NOITE VESTIDA DE MORTA

Quando a noite,
mãe de todo silêncio,
faz-se vestida de morta
é só a sombra
de quem espero
e não esqueço
que bate à minha porta.

NUMA NOITE

Seu olhar era coisa fria,
brasa apagada
(o fogo pra sempre extinto)
esquecida no meio da rua,
à espera da chuva
que o céu prometia.


Fábio Alexandrino, 27 anos, natural de Feira de Santana-BA, leitor(pra valer)de literatura, sobretudo poesia, há pelo menos uns dez anos. Graduando em Letras Vernáculas na UEFS (sexto semestre) e professor de Redação, Literatura e Língua Portuguesa no ensino médio. Seus autores prediletos: em poesia brasileira, Manuel Bandeira,Drummond e João C. de Melo Neto;em prosa, Machado de Assis, Graciliano Ramos e Guimarães Rosa.

segunda-feira, 11 de junho de 2007

"Perfil" (10)

OS OBJETOS

Os objetos
permanecem claros.

Habita a moldura
uma mulher de faces
cor-de-rosa.

Sobre a mesa de mármore
um cavaleiro de porcelana
saúda as visitas.

A caneta ainda escreve
com a mesma tinta
de um azul levemente melancólico.

Na gaveta, dormindo
sob cartas e poemas,
o revólver aguarda.


Ruy Espinheira Filho (1942), nascido em Salvador, é autor de mais de 20 livros, divididos em vários gêneros, como poesia, romance, novela, conto, crônica e ensaio. Estreou em 1974, com Heléboro. É professor do Instituto de Letras da UFBA e membro da Academia de Letras na Bahia.

sexta-feira, 8 de junho de 2007

Com a Palavra...

ROBERVAL PEREYR
1) Por que você escreve?

Escrevo porque sou inspirado. Ou porque, dito de outra forma, sinto, com uma freqüência e uma intensidade incomuns, algo como uma falta. Algo que me altera, inquieta, me move e que me impele, muitas vezes de forma irresistível, a criar. Aí, a sensação muitas vezes é de preenchimento e expansão dessa falta, tudo ao mesmo tempo. O resultado são vários desenhos e uma média de quatrocentos poemas por ano, afora incursões, que não são raras, por outras formas de criação: a canção, o texto ficcional, a produção teórica. Dessa busca resultam – como satisfação parcial, provisória – apenas algumas obras mais bem acabadas que não somam, ao final de cada ano, mais que duas ou três dezenas. Sem elas, no entanto, me sentiria privado, para usar as palavras de Nietzsche, da inigualável alegria de criar, e restariam apenas o vazio e o amargor existencial diante das várias tentativas malogradas. Escrevo, portanto, simplesmente para poder ser, para poder continuar sendo, para matar aquele que é o pior tipo de morte: a morte do sentido, a queda pavorosa, e ainda em vida, no vazio abissal do não-ser.


2) O que você gostaria de escrever e por quê?

O que eu gostaria de escrever é o que nunca vou poder escrever. É a obra impossível. Impossível e no entanto iminente – toda vez que me lanço, por exemplo, a realizar um poema. Isto é paradoxal, pois é graças a essa impossibilidade constitutiva, e como que atraído por uma miragem, que o criador realiza o sentido de sua vida e torna concreto um conjunto de obras. Portanto, em aparente contradição com o que afirmo inicialmente, o que eu gostaria de escrever termina sendo o que consigo escrever. O que quero dizer ainda é que, sob determinado ponto de vista, vale mais a aventura que seus frutos, que a justificam e são por ela justificados. Na verdade, o que importa a um escritor é sobretudo escrever, poder estar em disposição para escrever e propiciar as condições de fazê-lo, permanecendo fiel a si mesmo e dando o máximo de si. O restante, a sua obra – que é o que a todos mais interessa – fica por conta do Tempo, este deus caprichoso e cheio de mistérios, que a assumirá ou não em seu corpo: a História.

ROBERVAL PEREYR(1953) é natural de Umburanas – BA. Reside desde 1964 em Feira de Santana, onde foi co-fundador da Revista Hera, que vem dirigindo desde o seu número 3 (1973), quase sempre em parceria. Criou ainda outras publicações literárias (em Feira e em Campinas – SP). Classificado em vários festivais de música, em parceria com Márcio Pazin e Carol Pereyr (o mais recente foi o Nono Prêmio Visa da Música Brasileira, 2006). Ganhador de vários prêmios literários, tem dez livros publicados, nove deles de poesia, com destaque para Amálgama – Nas praias do avesso e poesia anterior (2004). Doutor em Letras e Professor Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

quarta-feira, 6 de junho de 2007

"Perfil" (9)

POETA DIÁRIO

A Carolina Machado e Gustavo Rios

Eu podia ser o dono de um bar.
Quem sabe assim não seria tão só,
sempre com alguém pra conversar,
filosofar e jogar dominó.

Venderia pinga, fósforo,
ficha pra sinuca e vitrola,
providenciaria pratos e copos,
falaria de jogo de bola.

E seria um tal de andar
de um lado a outro,
pra lá e pra cá,
anotando nos guardanapos
pedidos entre bate-papos.

Tarde da noite, mesmo cansado,
com o corpo em farrapos,
fumaria um baseado,
nos pés um pano de chão,
ou lenço na mão,
enxugando o balcão.

Depois das cartas e contas,
com a cabeça já tonta,
fecharia a casa
e abaixaria o som,
bom garçom.




Wladimir Cazé (1976) é jornalista e escritor. Começou a publicar literatura na internet em 2001, no e-zine K (ou K-zine). Junto com Patrick Brock, Delfin e Marcelo Benvenutti, é um dos fundadores da editora cooperativa Edições K, pela qual publicou dois livros: "A filha do Imperador que foi morta em Petrolina" (cordel, 2004) e "Microafetos" (poesia, 2005). Mantém o blog Silva horrida - Guia de cidades (www.silvahorrida.blogspot.com)

segunda-feira, 4 de junho de 2007

"Perfil" (8)

QUOTIDIANO

Frutas apodrecem
sobre a mesa.

Minha mãe está ficando magra.


SENDA

Tudo é abismo:
esta noite que entra
aquela voz que se cala.

Ai o assombro
que as flores me causam.


ECOLÓGICAS URBANAS N º 23

O espírito dos campos cabe num xaxim.


ROBERVAL PEREYR(1953) é natural de Umburanas – BA. Reside desde 1964 em Feira de Santana, onde foi co-fundador da Revista Hera, que vem dirigindo desde o seu número 3 (1973), quase sempre em parceria. Criou ainda outras publicações literárias (em Feira e em Campinas – SP). Classificado em vários festivais de música, em parceria com Márcio Pazin e Carol Pereyr (o mais recente foi o Nono Prêmio Visa da Música Brasileira, 2006). Ganhador de vários prêmios literários, tem dez livros publicados, nove deles de poesia, com destaque para Amálgama – Nas praias do avesso e poesia anterior (2004). Doutor em Letras e Professor Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

sexta-feira, 1 de junho de 2007

Com a Palavra...

KÁTIA BORGES
1) Por que você escreve?

Escrevo desde criança. Nunca experimentei uma vida sem escrever, não sei como é isso. Creio que poesia é maldição, pois aprisiona numa forma de viver e de ver o mundo muitas vezes sofrida e solitária, que não se realiza plenamente de outro modo.

2) O que você gostaria de escrever e por quê?

Quero escrever um romance histórico. É meu sonho. Já escolhi o tema e iniciei as pesquisas. Não posso adiantar ainda, mas é o meu projeto mais caro em termos de tempo e de empenho. Não sei quando ficará pronto, não me impus um prazo de conclusão.


Kátia Borges (1968) é jornalista, poeta e contista. Tem publicado De volta à Caixa de Abelhas (poemas, 2002). Participou das coletâneas Sete cantares de amigos (2003) e Concerto lírico a quinze vozes (2004). Tem poemas e contos publicados na revista Iararana (números 1 e 5). Mais textos da autora no endereço www.mmeka.blogspot.com.