segunda-feira, 30 de julho de 2007

"Perfil" (18)

COSTUREIRINHA

O pano e a agulha.
Agulha sem o rumo da costura,
Rasgo que pede remendo.
O do dia, rasgar-se e remendar-se.

Meus sonhos de bordados,
Do tudo bonito,
Do perfeito, da harmonia.
O medo do rasgo,
Os sustos do roto, do feio e do morto.
Costureira que acredita em assombração.

O pano e a agulha
Nas minhas mãos,
Que não quero sentir mais medo.

E a imagem que vejo
É de uma mulher que espera.
Uma mulher sentada embaixo de uma árvore.

O fazer da vida.
Os começos.
Uns dentro dos outros.
Os ínterins. As paralelas.
As constelações são as mesmas para todos os navegantes.

Igual a ir é voltar, que tudo é caminho.
Longe é só o cochichar da dúvida.
Perto é a mulher que está embaixo da árvore,
É a própria árvore.

Desejo de descansar no sim de teus olhos.

Voltar.
O caminho da volta é um dos princípios dos mundos.
Volta ao mundo tem muitos sentidos,
E eu preciso voltar.
Todos precisamos.

Perder-se é o sentido do círculo.
Volta ao mundo tem muitos sentidos.

Parto.
Volto.
Viajo.
O desejo de descansar no sim de teus olhos.

O pano e a agulha,
O sim do bordado.


VANESSA BUFFONE (Rio de Janeiro, 1976), reside em Ibiza, Espanha. É advogada e poeta. Em 2004, participou da coletânea Os outros poemas de que falei, editado pelo Banco Capital. Em 2005, conquistou o Prêmio Braskem de Cultura e Arte, com o livro As casas onde eu morei. Integra o Dicionário de escritores baianos, editado pela Secretaria de Cultura e Turismo e da Fundação Cultural do Estado da Bahia em 2006. Participa da coleção "Poetas da década de 2000", coordenada por Marco Lucchesi, com lançamento previsto para 2007. Coordenou o projeto Malungos, para dar voz à literatura baiana contemporânea, realizado em Salvador, BA, ora na gaveta, esperando verba para trazer tanto poeta baiano a Ibiza. Durante todo este ano, a autora estará entre Espanha e Londres gravando o CD de Chill Out & Literature, com o ícone e criador da música Chill Out, José Padilla. Uma das músicas já gravadas, Voltar, tem voice & lirics da autora, extraída do poema, Costureirinha. Está na nova coletânea de José Padilla, Café Solo 2.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Com a Palavra...

JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO

1) Por que você escreve?

Escrevo para poder continuar vivo, para preencher o imenso deserto do meu ser com os eus que vou inventando. Escrevo porque sofro de uma praga sagrada: a poesia. Escrevo porque se parar de escrever deixo de existir. Escrevo para matar a besta e decifrar o enigma. Escrevo o meu enigma. Escrevo porque é minha oração e meu paradigma. Escrevo para me proteger dos coices desses cavalos. Escrevo para encontrar a salvação no Vale de Josafá, no Vale do Jequitinhonha, em Jericó ou em Maracás. Escrevo porque escrevo. Escrevo porque tenho fome.



2) O que você gostaria de escrever e por quê?

Quero escrever um livro que me salve dos olhos das vossas línguas. Quero um livro que me coloque dentro da paisagem e que me faça esquecer de querer escrevê-lo. Quero encontrar a imperfeição perfeita dentro da minha escrita. Quero escrever um livro que não seja entre aspas. Só.


JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO é poeta e jornalista. Publicou os livros Código do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002), A Terceira Romaria (2005) e A infância do Centauro (2007). Organizou em 2004 o volume Concerto lírico a quinze vozes. É co-editor da revista Iararana e colunista da revista Cronópios.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

Perfil Especial

RECOMPENSAS

Foi ontem
Que aprendi a andar...

Hoje mesmo,
Pela manhã,
Que comecei a escrever...

Agora, à tarde,
O primeiro livro.

E mais tarde,
À noite,
O travo azedo
De ter sido.


O UNIVERSO

Olhei hoje
Uma mosca
Sobre o açúcar...

Olhei-a
Por longo tempo...

Estava morta.

Mas num dos olhos
Netuno...

E no outro
Vênus.


CÂMBIO

Trocamos continuamente
Os dias e os livros.

Trocamos quase tudo.
Até sorrisos.

E aperto de mãos
E olhares
E gritos.

A vida a isso resumida.

A uma troca infinita
Que expira.


POEMA SOLTO NO ESCURO

O lado vazio da cama
É a presença humana
Que mais atemoriza...


MAYRANT GALLO (1962). Contista e poeta. Autor de O inédito de Kafka (CosacNaify, 2003) e Recordações de Andar Exausto(Aboio Livre, 2005).

terça-feira, 24 de julho de 2007

Singularidades de uma jovem Escritora

VERDADES DESFOCADAS

Vejo tudo muito bem - e é por isso mesmo que, confusa e infantil e impermanente, agora quero ver tudo embaçado. A verdade passa pelo meu campo de visão e aprendi a friamente fingir não vê-la - antes de saber-me pequena eu até piscava e sorria para ela; desfoco tudo e apenas sinto o amargo da minha própria estupidez, e sou eu mesma a imagem perfeita dos limites da alma, a pessoa presa num muro alto de miopia autoconsciente e infeliz.


KATHERINE FUNKE, 25 anos, é jornalista profissional e aspirante a escritora e compositora. Nasceu em Joinville (SC) e mora em Salvador desde 2003. Colaborou em jornais catarinenses, trabalhou no Correio da Bahia e agora é repórter da editoria Salvador & Região Metropolitana do A Tarde. Mantém o blog
http://notasminimas.blogspot.com .

segunda-feira, 23 de julho de 2007

"Perfil" (17)

SERPENTÁRIO

a serpente dos meus dedos
beija o rosto que mantenho
no sem fundo dos espelhos
onde a luta é meu desejo

a serpente dos meus dedos
cria mundos sem inícios
curvas sobre precipícios
duro pacto do difícil

a serpente dos meus dedos
no vislumbre de uma aurora
que anuncia a incerta hora
sobre si mesma se enrola

a serpente dos meus dedos
inaugura junto à vida
gritos danças alegrias
lancinantes dores frias

a serpente dos meus dedos
traz a força dos venenos
que com a noite correm lentos
e com o dia tornam denso

o meu corpo em combustão


SANDRO ORNELLAS (1971) nasceu em Brasília-DF e mora em Salvador-BA. Autor de Simulações (poemas, Fundação Casa de Jorge Amado, 1998) e Trabalhos do Corpo (poemas, Letra Capital, 2007). Escreve o blog "Simulador de Vôo" (simuladordevoo.blogspot.com).

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Com a Palavra...

JOÃO FILHO

1) Por que você escreve?

É uma forma de dar sentido à minha vida. Já tive como ganha-pão vários ofícios e é bem provável que eu tenha muitos outros até aonde me for dado viver (minha subsistência não provém do que escrevo e nunca tive isso como meta, se acontecer algum dia, ótimo, e que seja muito), porém a literatura foi a única coisa que nunca abandonei ou ela nunca me abandonou. Se o que escrevo tem ou terá algum valor literário, se ficará ou não, desimporta, pois é tão somente a busca de tentar traduzir minhas inquietações contemplativas e ações reflexas diante da vida.

2) O que você gostaria de escrever e por quê?

Eu gostaria de escrever uma verdadeira obra-prima, porque é o que todos os que escrevem almejam, não é verdade? O gênero? Ah... Que são os gêneros diante de uma obra-prima? As obras-primas prescindem gêneros.


JOÃO FILHO é poeta e prosador. Publicou em 2004 o livro Encarniçado, pela editora Baleia. Participou de algumas antologias de contos. Escreve o blog:
www.hiperghetto.blogspot.com.

quarta-feira, 18 de julho de 2007

Da equipe (6)

MATILHA

Era o cão e o canto
e as pernas cansadas

o cão e o canto
no escuro

a rabiscar o nada.


PÁSSARO

Voa pássaro
que tuas asas são livres e tuas

Voa, e do teu ninho
zomba dos homens

(sós e loucos)
a voar em asas de aço

voa pássaro
que tuas asas são livres
e tuas


HAIKAI

a leve lua
lima as negras horas
e leva a noite embora


SETEMBROS

Não se angustie pelos setembros

eles como a vida passarão

E seus vinhos velhos
virão ao acaso

E entre as folhas
não dirão mais nada.


GEORGIO SILVA(1981) é natural de Riachão do Jacuípe. Músico, estuda letras com espanhol na Uefs. É casado e tem pronto o livro "O Menino em Mim". Co-editor do blog.

segunda-feira, 16 de julho de 2007

"Perfil" (16)


ENCRUZILHADA


Algo me aflige e não sei o que é.
Sinto relampejos de minhas existências
e não sei o que fazer nem para onde ir.

Vivo a buscar o signo que me presentifique,
que, uma vez enunciado, seja por si.
Estou exausto de ser uma representação.

Tem um bicho dentro de mim que quer
pular para fora de tudo e ser a aurora.

Ah se eu fosse o sol não arderia tanto!



JOSÉ INÁCIO VIEIRA DE MELO é poeta e jornalista. Publicou os livros Código do Silêncio (2000), Decifração de Abismos (2002) e A Terceira Romaria (2005). Organizou em 2004 o volume Concerto lírico a quinze vozes. É co-editor da revista Iararana e colunista da revista Cronópios. Tem pronto o livro de poemas A infância do Centauro, a ser lançado sábado, dia 21, na LDM Livraria Multicampi, na Piedade.

sábado, 14 de julho de 2007

Com a Palavra...

PATRICK BROCK


1) Por que você escreve?

Escrevo para purgar uma sina maldita, porque há coisas demais para se dizer no mundo, porque sinto falta do que já aconteceu, como alguém que é "borne back ceaselessly into the past" (Great Gatsby). Escrevo porque gosto e ainda tento parar de me preocupar com o gosto dos outros.

2) O que você gostaria de escrever e por quê?

Gostaria de escrever um romance - sempre fui contista mas tentei escrever algo mais longo quando era mais jovem. Hoje quando volto atrás e vejo o romance, acho um pouco clichê. Realmente não sei se conseguirei porque fico mais crítico e preguiçoso com a passagem dos anos. Escrever demanda tempo livre e tempo-livro e já não tenho mais essa dádiva, virei um adulto com um emprego e uma vida. Quem sabe. Algum mecenas por aí?


PATRICK BROCK tem 28 anos e mora em Nova York. É casado e trabalha como editor de tradução para o Wall Street Journal. Tem publicado pelas edições K Velhas Fezes e Textorama (contos). Colabora regularmente no Caderno Dez! do jornal A Tarde.

sexta-feira, 13 de julho de 2007

RÉPLICA AO POETA

Não, não aceito
Não quero pra mim
essa poesia embalsamada
Não quero pra mim
essa arte empalhada

Poesia é fome
É a boca seca de paixão
É o sangue ebulindo-se nas veias
É o corpo consumido de tesão

Morremos?
Sim
Todo dia
E o que deixamos de nós
é a poesia

MÔNICA MENEZES. Poetisa sergipana radicada em Salvador. Este poema propõe um diálogo (conseqüentemente uma variação de ponto de vista) com o poema Morremos todos, de Mayrant Gallo.

quinta-feira, 12 de julho de 2007

"Perfil" (15)

MORRENDO TODOS

Poesia é taxidermia
Arte decorativa e sem vida
Para um mundo já morto

E veja: ao reconhecer isso
Acabo de morrer mais um pouco

MAYRANT GALLO, em 6 de julho de 2007, depois de uma conversa com Ângela Vilma acerca de um certo tom de desânimo num texto do Madame K, de Kátia Borges. Poema incluso no livro inédito Os prazeres e os crimes.

quarta-feira, 11 de julho de 2007

O último vestido da Senhorita B.

Eu não a vi partir. Mas se tivesse que arriscar quandos e porquês, diria que ela me deixou em um abril qualquer. Deve ter aguardado março se despedir e aproveitou para me abandonar junto com ele. Eu, de olhos fechados, ainda soprava com inocência as velinhas do meu bolo de aniversário. Mal sabia que, enquanto estava distraída com novos pedidos, ela aproveitava tal oportunidade para ir embora para sempre. Seus motivos ainda ignoro, por isso, como as outras pessoas sofridas, atribuo culpa ao mundo. Blasfemo a condição humana, me recuso a falar com pessoas desconhecidas. Ajo desta forma na tentativa de chamar sua atenção, preciso de alguma resposta. Certamente, se estivesse presente, ela reprovaria minha postura. Sempre foi dessas enxergam beleza em tudo, costumava dizer que era entre estranhos que se sentia verdadeiramente familiar.
Recentemente, após uma de minhas longas buscas, acabei achando um de seus vestígios. Um velho vestido preto, o único que o tempo não levou de mim. Mas, ao contrário do que se pode pensar, não me senti feliz com tal descoberta. Porque ontem, ao tentar experimentá-lo pela última vez, acabei constatando: ele e suas promessas de felicidade não cabem mais em mim.
Renata Belmonte nasceu em 13/03/82, é advogada e autora de Femininamente (2003) e O que não pode ser (2006). O texto acima foi originalmente publicado no blog “Vestígios da Senhorita B.” (www.vestigiosdasenhoritab.blogspot.com), criado pela própria autora. Confiram.

segunda-feira, 9 de julho de 2007

"Perfil" (14)



DAS ELEGIAS: LÍQUIDA


A curva não é só carícia,
e sua graça muitas vezes
é aguda.
Se excessiva corrompe:
constante doçura na língua.

A forma é a intensa feminina,
começa no que delineado é coisa
e além do corpo é forma que não
se finda, pois
se colo que acolhe
também pode sufocar
se não calma e
ainda.

Alguns modos de perceber a feminina:
cúpula,
árvore,
vale,
anca,
água,
vento
na campina.


João Filho é poeta e prosador. Publicou em 2004 o livro Encarniçado, pela editora Baleia. Participou de algumas antologias de contos. Escreve o blog:
www.hiperghetto.blogspot.com.


sexta-feira, 6 de julho de 2007

Com a Palavra...

LIMA TRINDADE
1) Por que você escreve?
Escrevo porque não sei desenhar. E há um bichinho dentro de mim roendo o entendimento. Este bicho quer descobrir o mundo. Não lhe bastam explicações científicas. Ele quer a vivência dos seres e das coisas. Foi assim: um dia acordei e me deparei com um livro. Esse livro me tirou parte da solidão. Mas, para lê-lo, precisei ficar sozinho. Queria também saber cantar e tocar baixo elétrico. A literatura me permite tudo. E nada.

2) O que você gostaria de escrever e por quê?
Eu agora gostaria de escrever uma estória de amor entre um caminhoneiro e um intelectual cinquentâo. Tenho já um enredo planejado. As personagens me visitam vezenquando, sopram sua voz em meu ouvido quando menos espero. Então, para mim, torna-se um desafio. O que é razão mais do que suficiente. Há muitos conflitos escondidos aqui. Ainda não li nada com esse tipo de abordagem. Quero viajar pelo país. E brincar com a fantasia alheia. Será uma estória de vigor.
Lima Trindade, brasiliense radicado em Salvador, é escritor e editor da revista virtual Verbo21(www.verbo21.com.br). Autor da novela Supermercado da Solidão (LGE, 2005) e da coletânea de contos Todo Sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005).

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Da equipe (5)

A lua

A lua
puta
nasce
nua.

(A velha puta
ainda é dona
da noite suja).


Visita

A casa estava aberta
depois de tantos anos.
O pó sobre os móveis,
lembrança de tua partida.
Já não eras a mãe,
nem a filha.


Considerações a respeito do ato

O nó do laço
e a mesma lua baça.


Paulo André nasceu em 1978. Mora em Conceição do Jacuípe. Graduando em Letras Vernáculas. Co-editor do blog.

segunda-feira, 2 de julho de 2007

"Perfil" (13)

SNAP

Algo instintivo, intestinal, me levou a empunhar esta arma, agora apontada para a sua cabeça. Você tem filhos, sim, eu nunca os tive. Explosão seca de metal incandescente.


Patrick Brock , jovem contista baiano, tem 28 anos. É casado e mora em Nova York onde trabalha como editor de tradução para o Wall Street Journal. Publicou Velhas fezes e Textorama, ambos pelas Edições K, em 2004. Colabora regularmente no Caderno Dez! do jornal A Tarde.