quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

UMA CALCINHA

A calcinha estendida no quintal
de uma brancura insípida
é uma calcinha de menina.

A calcinha de menina no quintal
era o que restava
da menina,
das formas da menina.

PAULO ANDRÉ (1978). Mora em Picado. Co-editor do Blog. Poema originalmente postado no blog Contramão (mgallo.zip.net) em 01/09/2006.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

UM POEMA DE KÁTIA BORGES

O PEQUENO HITLER

A verdade é uma só:
todo mundo traz o menino de Branau
confinado dentro de si
em um bunker imaginário.
E todo sonho que temos,
seja entrar para a academia de artes,
ou possuir a espada de Longino,
é o marido de Eva Braun,
o arquiteto do caos,
que queima em nosso peito.
Pois também ele sonhou
na abadia de Lambach,
servir a Deus e ser bom.
E todo sonho que temos,
seja planejar uma cidade
ou comandar um exército,
é o dono do cão Blondi,
o filho de Klara e Alois,
que ruge dentro de nós.
Pois ele também sonhou
certa tarde no Museu de Hofburg
ter a lâmina da vida nas mãos.
E todo sonho que temos,
seja eternizar-se na memória
ou liderar uma nação,
é o plagiador de Blavatsky,
o falsificador de Nietzsche,
o criador de Treblinka
e de Auschwitz-Birkenau,
que grita dentro de nós.


KÁTIA BORGES (1968) é jornalista, poeta e contista. Tem publicado DE VOLTA À CAIXA DE ABELHAS(poemas, 2002). Participou das coletâneas SETE CANTARES DE AMIGOS (2003) e CONCERTO LÍRICO A QUINZE VOZES (2004). Tem poemas e contos publicados na revista Iararana (números 1 e 5). Mais textos da autora no endereço www.mmeka.blogspot.com.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

UMA BREVE COLETÂNEA...

INSTANTÂNEO

Um ponto qualquer do papel
é mar onde singra o poema.

Pena que nem sempre vê,
se sente ou se escuta o sopro.

Verde vereda
Verdade.

Um convite à folha branca.


TOTÊMICO

P/ Mayrant Gallo

Somos tantos,
e ante o totem atendemos.

Timidamente
tontos,

intimimamente
tempo...


MIRAGEM

Os olhos oblíquos
da cadela:

a sombra do filho
que não veio.


GEORGIO SILVA(1981) é natural de Riachão do Jacuípe. Músico, estuda letras com espanhol na Uefs. É casado e tem pronto o livro "O Menino em Mim". Co-editor do blog.

domingo, 2 de dezembro de 2007

NÃO ME FAÇA LER ESTE POEMA

Não me faça ler este poema
cheio de frases secretas
e de tanta inteligência.

Não me obrigue a ler o verso
que algum filósofo sustenta
para me salvar da inércia.

Seja para mim mero poeta
de olhar o horizonte todo um dia
e me convidar a sentar ao cais.

E, então, faça do seu livro um barco,
do poema velas e mastros
e deixe-me soprar.


MARCUS VINÍCIUS RODRIGUES é escritor, advogado e professor. Publicou PEQUENO INVENTÁRIO DAS AUSÊNCIAS (Fundação Jorge Amado/Brasken 2001). Participou das coletâneas CONCERTO LÍRICO A QUINZE VOZES (Aboio Livre, 2004), OUTROS POEMAS DE QUE FALEI (Banco Capital, 2004), e OUTRAS MORADAS (Banco Capital, 2007). Poema extraído da coletânea TANTA POESIA (Banco Capital, 2006).

domingo, 25 de novembro de 2007

TRÊS POEMAS DE WLADIMIR CAZÉ

MIGRAÇÃO

Serpente similar
a raiz encolhida
escolhe o trâmite.


Serve de comer terra,
para não sentir dor.


ENGUIA

Víscera arisca, esguia,
vai a hidra, veia magnética.


GAIVOTA

Embora sobrevoe
avenida e praias
de várias cidades,
atravesse vales
situados ao longe
e só volte ao mar à noite,
a gaivota gaiata
avista apenas mapas.


WLADIMIR CAZÉ (1976) é escritor e jornalista. Um dos fundadores da editora cooperativa Edições K, publicou dois livros: "A filha do Imperador que foi morta em Petrolina" (cordel, 2004) e "Microafetos" (poesia, 2005), do qual os três poemas acima foram extraídos. Mantém o blog Silva horrida - Guia de cidades (www.silvahorrida.blogspot.com)

sexta-feira, 23 de novembro de 2007

POUCAS E BOAS COM....

NELSON MAGALHÃES FILHO


1-Bem, apesar de escrever você é artista plástico. Como é dedicar-se a estas duas artes?

Artes Plásticas foi o curso em que me formei na Escola de Belas Artes da UFBA, em 1883, pois sempre gostei de desenhar desde menino. Escrever foi uma coisa que veio do hábito da leitura. Minha tia possuía uma coleção “O Mundo da Criança”, e eu ficava assombrado com aquelas ilustrações e histórias extraordinárias. Como eu passava muito tempo sozinho, sentia necessidade de ficar reinventando minha vida besta numa cidade do interior, matando lagartixas e pulando os muros dos quintais alheios. Então, não me sinto um escritor, gosto apenas de me divertir com algumas bobagens. Até hoje não levo isso a sério, mas tenho muita paixão pelo que faço.


2-Leitura para você é hábito ou necessidade? O que gosta de ler? Há um livro que você considera indispensável?


Admito que não leio tanto quanto deveria, porque para se escrever bem é realmente necessário se ler bastante. Quando tinha 17 anos li “O Ovo Apunhalado” do Caio Fernando Abreu, e nunca mais fui o mesmo. Todos os bons livros são indispensáveis. Atualmente gosto muito do escritor colombiano Efraim Medina Reyes.


3-Artes plásticas. Como vai o panorama das artes plásticas na Bahia? Há tendências para uma vanguarda? Há diálogo entre os artistas no sentido de uma comunidade artística?

A Bahia hoje tem inúmeros artistas plásticos de talento construindo uma arte da maior expressividade, e que não deve nada a nenhum grande centro urbano do mundo contemporâneo. A associação de Artistas Plásticos Modernos está se reestruturando e, acredito num futuro promissor neste sentido. A gente precisa continuar lutando por mais espaços.


4-Um nome indispensável para o gênero na Bahia?

São vários: Sante Scaldaferri, Graça Ramos, Leonel Matos, Caetano Dias...



5-Agora dentro da literatura, a poesia é escolha ou é sina? Quais os nomes que você considera sinal de Bahia em literatura hoje?

Não acredito nessa coisa de sina. Há muitos escritores e poetas que eu gosto demais. Não daria para citá-los aqui pois poderia esquecer algum nome, e ai... Mas você pode dar uma olhada nos links do meu blog anjo baldio.


6-Da sua série de pinturas Anjos Baldios , que inclusive intitula seu blog, qual a proposta?Dentro do cromatismo o que se procura suscitar? Quais as referências dentro desta realização? Ou não há referências?

Nos últimos 20 anos venho investigando diversas técnicas através de espontâneas apropriações da arte infantil e dos esquizofrênicos, para elaborar pinturas dentro de uma poética “perversa” abordando aspectos de nossas vivências dentro deste violento mundo cotidiano. Então, eu procuro realizar essa abordagem sobre a desconstrução do imaginário infantil e dos marginalizados. Essas pinturas são interpretações pessoais desses estados acumulativos, construídos em camadas fragmentárias. Existe uma nova tendência da pintura que abusa do transbordamento em seu discurso estético que eu gosto muito. Posso citar como minhas principais influências o neo-expressionismo alemão, o movimento C.O.B.R.A, Iberê Camargo, Sante Scaldaferri, Donald Baechler. Francis Bacon, Egon Schielle, Pollock, Basquiat, etc.



7-Projetos?

Estou iniciando uma nova série de desenhos e pinturas para realizar uma nova exposição em 2008. Também estou trabalhando em alguns vídeos experimentais. E tomando aulas de guitarra para compor meus blues, já que toco muito mal.



8-Você ensinou por um tempo pela docência na escola de Belas Artes da UFBA. Como é ensinar algo tão complexo como a arte? Como foi sua experiência neste período?

Fui Professor-Substituto de Pintura II (2004-2006) e não achei tão difícil ensinar a pintar a figura humana, pois tive professores fantásticos como Ailton Lima, Juarez Paraíso, Graça Ramos, Márcia Magno, etc. Foi uma experiência inesquecível e tive alunos maravilhosos.



9-Dentro do meio artístico baiano como transita Nelson Magalhães Filho?

Estou sempre realizando meus sonhos. Fiz diversas exposições individuais e coletivas em vários estados, publiquei alguns poemas em alguns jornais e revistas literárias. Fui premiado várias vezes nas Bienais do Recôncavo do Centro Cultural Dannemann e nos Salões Regionais de Artes Plásticas da Funceb. Em 1999 fui contemplado com o Prêmio Copene de Cultura e Arte (atual Braskem). Também participei com um vídeo na última Jornada Internacional de Cinema da Bahia, dentro do Programa Nova Produção do Cinema Bahiano. Mas o importante talvez seja a crítica corrosiva do público.


10-Por fim, um livro, um filme, um disco e uma frase pra por na capanga e sartá no caminho. Viagem rumo incerto sempre?

Seria impossível responder a tudo isto, porque a arte como a vida é sempre imperfeita e está em permanente mutação. Poderia citar alguns autores que eu admiro como Rilke, Hilda Hilst, Rimbaud, Cortázar, Clarice Lispector, Henry Miller...

Adoro os filmes do David Lynch, Herzog, Glauber, Wim Wenders, Almodóvar...

Ouço o tempo inteiro Bob Dylan, Lou Reed, Tom Waits, Marianne Faithfull, Leonard Cohen, Nick Cave, Nico, Patti Smith, Chavela Vargas, P.J. Harvey... também Caetano Veloso, Lenine, Cazuza, Raul Seixas, Xangai, Elomar, Chico Buarque...

Agora a frase: tem uma do Rimbaud que acho demais: “A moral é a fraqueza do cérebro”.

Nelson Magalhães Filho é artista plástico e mantem o blog www.anjobaldio.blogspot.com

sábado, 17 de novembro de 2007

TRECHO DO ROMANCE UM RIO CORRE NA LUA,

DE RUY ESPINHEIRA FILHO


O prefeito soube pelo seu chefe de gabinete.

– Visagem? – perguntou o Dr. Fulgêncio.

– Sim, doutor.

– E em pleno dia? Ora, bobagem tem limite!

– Se é bobagem, é das grandes, doutor: me disseram que há um mundo de gente enchendo a Rua da Areia!

– É, tudo pode acontecer mesmo nesta vida, até visagem em pleno sol!

Bom, ele iria verificar. Fechou o volume que estava lendo, do seu colega de Medicina Anton Tchekov, e saiu. A Delegacia ficava no caminho, ele entrou. O tenente Evandival folheava uma revista velha e não sabia de nada.

– Uma visagem, doutor?!

– Foi o que o atrapalhado do Alcides me disse.

– Essa gente acredita em qualquer coisa.

– O homem só evolui na tecnologia, tenente. No resto, é o mesmo dos tempos de Adão.

– É, doutor... Vai ver, é algum palhaço de perna-de-pau anunciando circo.

– Espero que sim, estamos mesmo precisando de divertimento por aqui. Mas não duvido de que possa ser mesmo uma visagem.

– E o senhor acredita nessas coisas, doutor?!

– Não é questão de eu acreditar ou não, mas de se acreditar. Havendo quem acredite, sempre haverá... Talvez a única atitude sábia seja nunca duvidar de nada na vida, tenente. Porque ela é feita de alucinações sem fim, talvez até um pouco mais em Rio da Lua.

– Será mesmo, doutor?

– Não duvide, tenente.

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

A casa do meu pai

Na casa do meu pai
tudo é exigido

Obediência súdita,
quase cega

Me ensinou a mastigar
e a cuspir

Me ensinou a capinar
e a colher

Me ensinou a calar
sem discurso

A vida soletrada
na ponta de um lápis

A casa do meu pai
é o único país que conheço


THIAGO LINS (1978) é natural de Fortaleza (CE). Co-editor do blog.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Uma chuva de HAI-KAIS de Mônica Menezes


Hai-kai cotidiano

A poesia
escorreu pelo ralo da pia
enquanto eu lavava os pratos


Hai-kai para o muro

Para Sarah


A menina na janela
não vê o muro
seus olhos têm habilidades de firmamento


Hai-kai benjaminiano

Meu avô
é uma cadeira de balanço
vazia



Hai-kai quase seco

O extenso rio
da minha infância
tornou-se lama entre meus dedos

MÔNICA MENEZES. Poetisa sergipana radicada em Salvador.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

UM POEMA DE ÂNGELA VILMA.

CLARIVIDÊNCIAS

Tudo se percebe

nas frestas e passagens

em que janelas sabem

os risos dessas brisas.

Entre verdades intensas

o tempo desmente a vida.


ÂNGELA VILMA (1967) é poeta e professora. Mora em Salvador. Participou da coletânea Tanta Poesia (Banco Capital, 2006).

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Viagem ao Quelembe

Valdomiro Santana
In Pastelaria Triunfo


Já estou no bojo da madrugada. É o que me diz a aragem mais fria.

Os sons de que me lembro vêm lentamente, um após o outro: o ciciar do vento na folhagem, a vibração dos insetos, o piar de um curiango, o murmúrio de um córrego... E logo se misturam aos cheiros, gostos, imagens, tantas sensações de que é feita a fascinação do mundo da roça.

Parece haver um intervalo entre esse conjunto de sons e o que agora ouço, como se fossem chocar-se dentro em pouco, do mesmo modo que há um estremecimento quando um mistério se desvela.

Aqui, porém, neste pedaço do Recôncavo, me dou conta do que, sendo mistério, só se desvela para no mesmo instante se velar e assim permanecer mistério, nem maior nem menor, porque mistério não se mede.

É no intervalo da aproximação dos dois conjuntos de sons que minha infância, com seu fundo rural, deixa de ser o tempo que passou, como se um cinegrafista ainda estivesse registrando-a.

Deixo que fluam esses instantes luminosos do acaso, a encantada emoção de estar só, aqui e agora, e não em minha terra, conversando comigo mesmo. Sou um homem que revisita uma pequena cidade depois de 38 anos e resolve sair, à noite (por que à noite?), andando pelos arredores e pelos distritos e povoados do município, seguindo estes caminhos ladeados de mato, sob a lua escassa.

Não há, como receei, choque entre os dois conjuntos de sons. Imperceptivelmente fundem-se, polifonizam-se.

Ouço agora o crepitar dos gravetos e galhos secos. Fiz esta pequena fogueira, e junto a ela me aqueço, deito-me.

***
Dormi?
O dia desponta devagar neste meado de março. Há um restinho de neblina. De repente, outra lembrança. Eu, menino — o céu ainda escuro, lá no sertão, longe, no norte da Bahia —, andava numa estradinha de terra; cruzava a linha do trem e ia com um tio no rumo de um lugar chamado Gameleira para tirar o leite de cinco vacas. E no caminho ia sentindo o úmido cheiro das moitas de coirana, malva e assa-peixe. Umas vinte braças atrás do curral, um rio; e do lado de cá, na margem esquerda, seis pés de manga-espada; na outra margem, ingazeiras; e flanqueando uma trilha que subia para a serra, pés de café, plantados em 1921 pelo avô materno Joaquim, de apelido Sinhô, que morreu em 1933.

Onde estou?

Reconheço: isto aqui é São Roque. Guaí, antigo Capanema, fica para esta banda. A Vila de Nagé, do outro lado, depois daquele morro. Depois, Guapira e Coqueiros.

Ando e ando. Ali, vejo, Barra do Paraguaçu não é muito longe. São tantos povoados. Água Fria, Viração, Batatã, Campina, Imbaíbas... Vou em Ponta do Souza? Tanque dos Paranhos é uma lagoa.

Pego uma vereda. Pronto. Começou a festa dos sanhaços, curiós, bicudos, coleirinhas, bem-te-vis...

Ando. Torno a parar. Ali, bananeiras, uma plantação de mandioca. O terreno ondula, depois sobe. Ando. “O pasto de cima é o de Agapito. Lá, ele tem uma casa de farinha”.

***

Era aqui a porteira. Como grita, sem som nem sentido, este advérbio: aqui! A casa não existe mais, nem o pé de maçaranduba rente à roça de Zé de Salvino.

Aqui. Dispersaram-se em 38 anos as ressonâncias dos sete paus roliços dessa porteira e de seus moirões de cabiúna. Mas ressonância não é repercussão, aprendi com Bachelard, o filósofo da imaginação poética. Na ressonância, o espírito da imagem; na repercussão, a alma dessa imagem.

É a repercussão que agora opera a revirada do ser porteira, seu sopro, sua emanação. “Os diferentes nomes de alma, em quase todos os povos, são modificações derivadas do fôlego e de onomatopéias da respiração”, escreve Charles Nodier, citado por Bachelard num rodapé d’A poética do espaço. Em francês, inglês e alemão, por exemplo, alma é âme, soul, die Seele; e espírito — sprit, spirit, der Geist. Que diferença! E, no entanto, alma é uma palavra esquecida ou reprovada. “Antes errar com alma”, diz Unamuno, “do que acertar sem ela”.

Se a alma não tivesse o poder de inaugurar as coisas, de ser potência de primeira linha, a “forma” da porteira seria só conhecida, percebida, talhada num lugar-comum, um simples objeto para o espírito, o psiquismo. Na curva de 38 anos, e bem antes desse tempo, é a alma que vem inaugurar essa porteira, habitá-la, deleitar-se com ela, na muda verticalidade dos moirões, na sonora horizontalidade dos sete paus que abrem e fecham seu ser.

***

Agapito, Santa, sua mulher — e Irene, a filha, que fazia bonecas de pano.

Ando.

Então é isso a vida de um homem? Deixar no meio da semana uma cidade turbulenta e voltar 38 anos depois a um lugar que não é onde nasceu, palmilhá-lo sozinho à noite, devanear, deitar-se junto ao fogo, levantar-se, andar e andar, os sentidos todos prontos?

Onde estão Santa e Agapito, Irene e suas bonecas de pano?

Trinta e oito anos. Agora. Por que é elástica esta palavra?

Se minha mãe estivesse viva, diria zombando de mim: “É muito tempo para quem está esperando debaixo da chuva”.

Um entroncamento de veredas, e cada qual com sua cadência. Sigo por uma, que também me acolhe, aventureiro da solidão.

“Chegou bem na hora”, disse Agapito ao me receber na porteira. Subimos o pasto. “Só não repare que o rancho é pobre”.

Era um puxado da casa de farinha, tudo de pau-a-pique, feito por ele; e também os apetrechos: a roda com as manivelas e a correia de couro para acionar o rolo de dentes afiados onde se ralava a mandioca cevada e descascada; as gamelas, as arupembas com as palhas bem trançadas e o arco firme prendendo-as; a prensa e o cocho, o forno e o lajeado certinho da chapa, rodos, alguidares.

Fumegante e adoçado com rapadura, o café que Santa me deu numa caneca de flandre.

“Quer beiju?”

“Quero”.

“O da hora é que é bom. Agorinha faço um, enquanto o diabo esfrega um olho”.
Engraçada, Santa. Era de Poço Redondo, Sergipe. Enquanto fazia o beiju num alguidar, cantarolou:


Já passei por tanta coisa
Que tudo hoje me distrai
Pra Lagarto, Capela ou Propriá
Seu menino me diga
Se Rosinha vai ou não vai
Ô Rosinha, Rosinhá
Se vai, vai
Se não vai, venha cá
Ô lelê, ô lalará
Ô Rosinha, Rosinhá.


Perguntei que cantiga era essa; respondeu:

“Ah, isso é do tempo do ronca. Uma doida que cantava, lá em Porto da Folha. Joana Cangula, o nome dela. Já morreu. Nunca vi um lugar ter tanto doido. Minha avó era de lá, mas não era doida”.

***

Desde o anoitecer de ontem que ando por estes matos. Calculo umas cinqüenta braças daqui até onde era a porteira de Agapito.

Há muito não sei o que é um feixe de sensações tão rico quanto este. Foi agora, a partir do anoitecer de ontem, que ele se formou, ou veio se formando nessa lonjura do tempo, como um caleidoscópio invisível, girando por dentro de meus olhos, no fundo de meu ser, até eu intuir que o azul é a escuridão tornando-se visível? Na distensão de meus músculos? No gosto do café com beiju? Na alacridade dos pássaros? Nas vozes que evoquei há pouco? No cheiro entontecedor da manipueira escorrendo no cocho da casa de farinha?

Bebo do cantil um gole de cachaça. E continuo andando. Não vejo mais onde era a porteira de Agapito. Abaixo um dos fios de arame farpado e passo por esta cerca; a terra está limpa, encapoeirada, bem chovida, pronta para o plantio de milho e feijão. Quem é o dono? Ando. Noto que a colina, vista da curva da roça de Zé de Salvino, é maior do que eu supunha: é uma serra onde grande parte da cobertura vegetal está preservada. Já avisto o começo da escarpa; e escuto o que me parece a linha mole de uma melodia em que se misturam gemidos, bulícios, suspiros, gorgolejos. Este som é nítido, apesar da algazarra dos pássaros.

Ando mais. Paro. Estremeço de emoção. Só agora me lembro: eu me despedira de Santa e estava descendo o pasto — Agapito um pouco à frente para abrir a porteira, quando uma menina vinha subindo com um pote na cabeça. “É Irene”, ele disse. “Foi ver água no Quelembe”.

Meu Deus! Trinta e oito anos e reacende-se em mim o antigo e ainda corrente significado rural nordestino: ver é o mesmo que buscar.

Irene tinha ido buscar água no que só pode ser um riacho. É isto que agora escuto: um murmúrio. E tão nítido. Por mais que, no sopé da serra, farfalhe um bambual. Murmúrio que vem dali daquela várzea, coberta de capim-guiné rebrotando.

Terá minha imaginação se infiltrado em minha memória para que um som irreal se produzisse, o barulho da água no pote que Irene sustinha na cabeça há 38 anos? Ando. Bachelard de novo ecoa em minha cabeça: “Um valor vivo integra uma realidade. É preciso que todos os valores tremam. Um valor que não treme é um valor morto”. Sou então o que me fez estremecer há pouco: esta fronteira entre o barulho da água, associado ao brilho nos olhos de Irene, ao desenho da rodilha onde assentava o pote úmido e fresquinho por fora, e a realidade vista e sentida a fluir incessante em dois metros de largura, se tanto. Que mundo entre o som da água chacoalhando naquele pote e o da água a murmurar neste riacho!

Quelembe. Sussurro a linda linha intervocálica. Digo em pensamento este nome pueril e doce, guardado nas veredas desta viagem, em cada curva deste silêncio de 38 anos. Abaixo-me para vê-lo bem de perto; e, ao molhar as mãos em suas águas, torna-se pleno meu sonho acordado: num instante um folguedo mágico se tece dentro de mim, diante de mim.

Hipnotizado pela solidão, eternizo esse instante — eu, que já vi tantos córregos e todos eles se parecem, não consigo me lembrar de nenhum outro.

Córrego. Arroio. Riacho. O primeiro o de córrego é todo alegrinho; o primeiro o de arroio, que som redondo perfeito; e o a de riacho é pura claridade cantante. O r gemina-se, soando dobrado, rolado, em que a raiz da língua se aproxima da campainha (a úvula), fazendo-a vibrar. Sublinho cada uma dessas palavras; experimento a primazia do vocal sobre o sonoro; e, mais ainda, a alegria de enunciar Quelembe, sua particular e lúdica e generosa modulação.

Quase seis horas da manhã. Eu, que até o entardecer de ontem era um homem sem mais nada, pois cansado de tantos descaminhos, sedento de tanta coisa vã, encontro este amigo distante e solitário. Quelembe. Sua geografia única, seu nome, seu murmúrio, seus submurmúrios. Bebo sua água. Lavo meus olhos. E junto a ele respiro, repouso, como se fosse para sempre, neste calmo alento irisado pelo azul-opala do alto desta serra, pelos verdes desta várzea. Sou este calmo alento. E recomeço a viver.


Março, 2005

Valdomiro Santana nasceu em Campo Formoso, BA (1946). É jornalista e escritor. Cursa atualmente o mestrado em Literatura e Diversidade Cultural na Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Autor dos livros O dia do juízo (contos), Literatura baiana 1920-1980 (ambos publicados pela Philobiblion, Rio de Janeiro, 1986), Pastelaria Triunfo (crônicas [Edições Cordel, Feira de Santana, 2005]) e A paixão da leitura (inédito). Organizou e prefaciou as antologias O conto baiano contemporâneo (Empresa Gráfica da Bahia, Salvador, 1995) e Melhores contos, de Wander Piroli (Global Editora, São Paulo, 1996). É um dos 44 participantes (entre os quais, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Aníbal Machado, Rubem Braga, José J. Veiga, Lygia Fagundes Telles e Luiz Vilela) da coletânea Trabalhadores do Brasil — Histórias do povo brasileiro (Geração Editorial, São Paulo, 1998, organização e prefácio de Roniwalter Jatobá).

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

O BALÃO AMARELO

A feira cobria toda a extensão da praça. Homens, mulheres e crianças comendo, comprando, vestindo, experimentando. Os carros no estacionamento subiam uns nos outros, gritavam. Casais se encostavam em árvores, encolhiam-se em bancos. A lua acolhia e iluminava. Meu bem vinha caminhando ao meu lado quando parou e anunciou que precisava fazer uma ligação. Assenti, feliz que estava com o novo anel no dedo, imitação de aliança quase igual à dele. Da cadeira esquecida numa barraca, eu o olhava na fila, aguardando gente apaixonada falando distante. E acompanhava a movimentação colorida e alegre que se entrelaçava à minha frente. Próximo, pais afoitos continham meninos diante de um homem que enchia de gás balões coloridos. Era um rapaz e não se inquietava com os pedidos e protestos tenazes das crianças, apenas baixava a alavanca quando a boca do balão estava encaixada no pistom. Provavelmente tinha filhos e vendia balões para sustentá-los. Meu bem, paciente, após a espera na fila, finalmente conseguiu chegar ao orelhão. Mordi os lábios. O rapaz enchia os balões um a um. No final, dava-lhes um nó, entortava, torcia, até que adquirisem uma forma engraçada qualquer. Quando começava a esculpir um balão amarelo longo como uma cobra, este teimou e desafiadoramente se desprendeu de suas mãos. Meu bem sorria longe, o fone entre o rosto e o ombro e uma das mãos no bolso do jeans. O balão amarelo dançava lento no vácuo. Estalei os dedos. Meu bem agora falava animado. Eu não o ouvia. De repente parou, deteve os olhos em mim e se virou de costas. Procurei o balão no céu. Ele já avançava sobre os postes de luz improvisados. E recordei da estranha manhã em que eu era muito pequeno e mal tinha aprendido a andar. Estava só, na frente da nossa casa, no meio da rua, numa ladeira. No final, o Lago. A cidade era uma armação desdentada e nós ainda morávamos em casas coletivas de madeira, próximo ao Paranoá. Tive medo de tropeçar, cair, rolar e parar dentro das águas do lago. Estava só e ainda hoje não sei como havia chegado ali nem como fiz para sair de lá. Eu não sabia falar e o medo paralisara meu choro. Sentia que uma fatalidade me levaria a cair, rolar e parar dentro das águas para morrer afogado. Não sei como saí. O balão amarelo ganhava altura e diminuía de tamanho. Meu bem virou novamente. Ele falava e eu reparava no quanto ele era forte, no quanto me inspirava segurança e proteção. Fez um aceno para que eu mantivesse a calma. O balão estava agora quase no meio do céu. De alongado, tornou-se redondo. Redondo como a bola que meu pai me jogava para que eu chutasse desajeitado. Estávamos na areia e alguns colegas e vizinhos brincavam conosco. Eu não sabia chutar direito, dava com os pés nos montes e reentrâncias da areia e via os outros rir. Mas meu pai não ria, insistia e jogava a bola para mim. Eu errava e não me sentia ridículo por errar. O balão não era mais amarelo. Virara um ponto branco igual às estrelas. E como estrela se apagou no mistério da noite. Eternizou-se. Meu bem desligou o telefone e veio em minha direção. O tempo era não mais que uma mentira, a vida tão simples quanto passear na feira e pedir um doce, alcançando com o coração o que anos de esforço e tentativas não me deram, sendo eu um pequeno balão amarelo a fugir de hábeis mãos, ilustrar o escuro do céu e saber que nada era tão importante quanto estar ali, ao lado do meu bem, considerando como um tesouro o anel de brilho falso apertado no dedo.


Lima Trindade
é autor de Supermercado da Solidão (romance, LGE, 2005) e Todo Sol mais o Espírito Santo (contos, Ateliê, 2005). Além disso, edita a revista eletrônica Verbo21 (www.verbo21.com.br). Este conto integra o livro Corações Blues e Serpentinas, publicado em outubro de 2007.

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Poemas...Simulação....Dois Poemas assim...


ALEGRIA

alegria de uma linha, uma palavra, uma letra;
um traço que esgota a mão, fere a face,
esgana a gorja; o desastre a perseguir o
desejo despido da coragem que mostram
os verdadeiramente capazes (é a realidade
pura escalando o mundo que se mostra nos
que escrevem); esses se escolhem e acolhem
o irresistível, embriagados de vida e vodca;
jamais – no entanto – se escreve acompanhado,
leva-se junto mundos, pulsos, vultos de um
perto muito distante, a necessidade
aleatória dos nossos familiarmente estranhos
(alcançam-nos na maior das solidões
deserto povoado da escrita); escreve-se
solitário, mas nunca sozinho; uma turba de
almas nos atravessa, e a força de existir aperta
os estreitos laços da mais incompartilhável das
experiências; é acompanhado de si mesmo
que se descobre o preço irrespirável da alegria


DESTINO IMPURO

o leopardo acelera sua máquina predadora
contra a fome que morde, o antílope
na posição de presa foge veloz para os braços,
o zangão à beira do gozo – à beira da morte,
à beira da abelha-rainha – sabe a alegria,
força, destino. tantos corpos no corpo,
tantos vôos no vôo, tantas vidas, um norte –
mestiço de impulso impuro. na hora
das coisas cruéis, decisivo é ultrapassar
a planta carnívora do medo para flertar com
a alegria do mundo na sua fulgurante desaparição.


Sandro Ornellas (1971) nasceu em Brasília-DF e mora em Salvador-BA. Publicou os livros de poemas SIMULAÇÕES (1998, Salvador, Fundação Casa> de Jorge Amado, Prêmio FCJA/COPENE para autores inéditos) e TRABALHOS DO CORPO (2007, Rio de Janeiro, Letra Capital). Também é professor de literatura na UFBA.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Um conto de Mayrant Gallo

A MÁQUINA DO DR. K.

Desde o início, soube que usaria a máquina. De nada adiantou protelar sua decisão. Isso apenas permitiu a colaboração indireta da esposa, que o rejeitou na cama e pela manhã saiu sem aviso. Sua imaginação fez o resto. Essa gota de oceano o empurrou mais cedo para a máquina. Num fim de tarde nublado, dirigiu-se ao prédio decadente e sondou a existência do obscuro Dr. K., o inventor e primeiro explorador do inconcebível artefato.

A partir de então só pensou na máquina e nas vantagens asseguradas: novo rosto, novo corpo, outra personalidade. E com isso outra vida. Todavia, era preciso não se iludir: a transformação tornava as pessoas apenas outras pessoas, mas em tudo iguais a quaisquer outras. Os hábitos, embora novos, continuavam os mesmos, coerentes com a espécie. A transformação obedecia, por um lado, ao gosto do usuário e, por outro, a uma fórmula já consagrada pela própria vida. Foram estes, em suma, os prós e os contras expostos pelo Dr. K. A última condição era: uma vez transformada, a pessoa não podia voltar atrás e, por conseguinte, só poderia se submeter a uma nova transformação oito anos depois. Tal exigência não era de natureza contratual, mas fisiológica, uma limitação do corpo humano...

Nos dias que se seguiram, organizou-se como se fosse partir em viagem de férias. Despedia-se, era evidente. A esposa se surpreendeu. Ele consertou todos os eletrodomésticos parados havia meses e, sem nunca ter manuseado antes um pincel, retocou as paredes manchadas pelo desespero de ambos. Também poliu os móveis e saiu em busca de novos suportes para as cortinas dos banheiros. Os reparos em sua vida íntima não foram poucos: passou a acordar mais cedo e convidar a esposa para caminhar, e a ir com ela às compras, quase interessado ou pelo menos em silêncio, a observar sua destreza em escolher e avaliar os produtos, respeitando sua natureza retraída e cautelosa. Fatos assim, se recorrentes, dispensariam a máquina...

No trabalho, livrou-se diligentemente de todas as pendências. Desengavetou antigos projetos e, atualizando-os, deu-lhes nova forma, redação mais precisa, livre de ambigüidades. Em duas semanas, o chefe o congratulou pelo entusiasmo dos últimos dias. Naquela tarde, saíram e se conheceram melhor. Quase se tornaram amigos. E marcaram uma pescaria, à qual levariam, ele a esposa, e o chefe a jovem namorada. Estavam bêbados e, por isso mesmo, mais íntimos, sem reservas. Chegou tarde em casa, mas ainda assim a esposa o esperava, afável e excitada. Prolongaram-se na cama, rindo e conversando. Depois lancharam e voltaram a se amar. O sol subia no horizonte quando afinal adormeceram, esquecidos dos sombrios temores dos últimos meses.

O segundo encontro com o Dr. K. aconteceu, apesar da felicidade que agora o contemplava. Com a esposa, era como se tivessem voltado aos primeiros dias. Transformada, ela por muito pouco não retomara aquela fisionomia inicial, que lhe tirava o sono. Mesmo assim, não mudou de idéia. Seguia por trilhos sem volta. O Dr. K. o obrigou a preencher uma enorme papelada e em seguida, tendo chamado sua jovem assistente, o introduziu na sala onde estava a máquina, uma alta cápsula metálica, de superfície uniformemente lisa, com duas imperceptíveis portas, uma de cada lado. Afora isso, nenhum botão, qualquer mecanismo. Aparentemente, a operação se concretizava mediante controle remoto. De fato, nas mãos tanto da assistente quanto do doutor havia um bastão da mesma cor azul-metálica da cápsula e repleto de botões. A um gesto do doutor, uma das portas se abriu, para cima. A assistente o pegou pelo braço e conduziu até o interior da cápsula. No exíguo compartimento não havia nada, exceto o ar sufocante e asséptico. Enquanto usuário, ele teria que ficar de pé ali, entre quatro paredes, e esperar... Então adormeceria e, como num sonho, antes de cair, despertaria do outro lado, outro. O processo não consumia mais que dois minutos, garantiu a moça, com uma voz de veludo e um sorriso provocante. Quando fez menção de deixá-lo, ele protestou: "Não".

"Não?", ela disse, surpresa.

Não estava preparado.

"Ninguém jamais estará", filosofou o Dr. K.

Abandonou o estreito compartimento. Durante o tempo que esteve ali suas mãos passearam pela lisa superfície metálica. Assim vira, certa vez, num filme antigo, um homem tocar os livros na estante. Espécie de despedida ou de reconhecimento de um universo ou instante já perdidos ou por esquecer, brevemente... O súbito roçar da morte, talvez, ou o despertar para um incerto mundo de sensações. A verdade era que ali, naquela espécie de ataúde, ele iria desaparecer em breve, e para sempre. Seu último ato nesta vida.

"Eu sei", disse, com um considerável atraso e no tom vazio e hesitante de alguém que a vida inteira foi um tímido, um inadaptado. "Amanhã, sem falta."

Naquela tarde foi visitar a mãe no asilo. E talvez se despedir. Não foi difícil: a velha, diante da tevê, se assemelhava a um peixe impassível dentro do aquário. Emanava indiferença e fleuma. Não era o filho que estava ali, mas um homem qualquer, estranho. O lábio inferior, caído, acentuava-lhe a expressão de desdém e alheamento. Comiserado, ele puxou uma cadeira e se interpôs entre a mãe e a tevê. Para seu assombro, a mulher continuou a olhá-lo como se ele fosse uma extensão do aparelho. E mesmo quando ele o desligou ela não esboçou nenhuma reação. A definitiva ausência de vida útil a suprimira de si mesma. Restava-lhe agora fundir-se à noite... Esta certeza o esmagou.

A esposa o procurou na cama, mas, pela primeira vez desde que se conheciam, ele a recusou, com elegância e uma contenção sexual incomum nos homens. Sem rancor, ela se virou e adormeceu, em segundos, dissolvida na exaustão. De seu lado, ele já ia sonhando, sonhando e sendo absorvido. O Dr. K. e sua assistente os receberam sem ânimo, os gestos bruscos e automáticos. Quando afinal a moça lhe perguntou, friamente, quem desejava ser, ele ficou prostrado, sem palavras. Não concebia a vida como uma escolha senão obscura, indefinida, do acaso...

"Vem", a moça disse, puxando-o delicadamente. "Não importa. É sempre assim, com todos..."

MAYRANT GALLO. Publicado , 03/09/2006, no Correio da Bahia, com uma "hipercorreção" do inteligente revisor do jornal, que estragou o conto. Esta é a versão correta.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Um conto

O argumento

P/ Mayrant Gallo

“ Tenho um argumento de Borges”, disse.
“Como?, perguntei”
“Tenho um argumento de Borges”, disse sentencioso.
Ouvi perplexo aquela confissão, muito mais pela imaginação que pela veracidade do fato. Para dar continuidade aquela conversa sobre literatura, livro, ficção, perguntei:
“ Como conseguiu?”
“ O próprio Borges me deu”.
“Não sabia que havia conhecido Borges?”
“ Deu-me em um de nossos encontros em Buenos Aires”.
“ A tarde era cinza (creio recordar) passeava pelo parque de simetrias labirínticas, lá encontrei Borges.
“ ’Esperava-o’, disse-me, 'escolhi esta tarde em Buenos Aires. Poderia ter sido Genebra, Veneza ou Pequim'. E entregou-me uma folha de papel amarelecida.
Peguei o papel e saí. Sabia que já não haveria diálogo, já havia acontecido e aconteceria.
No segundo encontro falamos das pombas e da prova da existência de Deus. No último perguntei: ’Mas... porque eu?’ `Se não fosse você, seria outro. Um homem é todos os homens. As páginas de Chesterton escrevi-as eu e o Xá da Pérsia, as páginas que escrevi, escrevestes tu e tuas páginas escreveria um outro`.
Guardei o argumento dentro do caderno de anotações e o conservei ali, intacto. Voltei ao Brasil, tempos depois soube que Borges voltara à eternidade. Desde então, aguardei nosso encontro futuro.”
Ouvi o relato quieto, imaginando se não seria mais uma de suas ficções que tendia para o fantástico.
Nos vimos mais duas vezes. Na primeira enumerou-me dez escritores universais: Camus, Machado, Rosa, Cortázar, Márquez, Kafka, Hemingway, Kosztolányi, Conrad e Borges. E mais alguns poetas: Safo, Vilariño, Rilke, Drummond, Bandeira, Káfafis, Baudelaire, Quintana, Vinícius, Rimbaud.
Os pombos comiam tranqüilos a nossa volta. Disse (creio recordar): “ Um pombo, todos os pombos. A frase parecia uma questão medieval.
No ultimo encontro, não disse nada. Tentava fixar, por instantes, alguns rostos que passavam, compreendi que aquele seria nosso último encontro. Deixei-o na praça esperando a eternidade. Tempos depois, uma pequena nota no jornal noticiava sua morte.
Recordava nosso encontro (ou acreditava recordar) naquela praça em Salvador, os pombos e os rostos que tentava fixar. Me perguntava se não havia sido um sonho ou se não éramos personagens de algum de seus contos. Daqueles encontros, restou-me esta folha de papel amarelecida.
Esperava... o arrulhar dos pombos e rostos que passavam inventavam a tarde.




Paulo André Correia (1978). Mora em Picado. Co-editor do Blog.

domingo, 21 de outubro de 2007

POUCAS E BOAS...Com...Lupeu Lacerda.

Entrevista toma da na marra ( risos! ) do nosso amigo de trincheiras Lupeu.

Uma alma Cariri,moldando a massa da poesia ,riscando cadernos e travando a base de foice uma luta de tempo e prosa.Confiram!!!



1-) Dentro desta sua lida de escritor artesão, esculpindo madeira e palavras como é estar na lida da literatura aqui na Bahia?



R. Quem dera esculpir madeira... Ainda vou. Mas por enquanto a coisa é biscuit. Sonhos e palavras de biscuit, anfetamina, cerveja gelada e mais sonhos e mais livros de amigos, e sabendo que: Bahia ou não... Quem quer escrever tem de saber que tem de primeiro ensinar alguém a ler. Coisa difícil. Mas coisas difíceis são buenas. Assim vou: meio Ceará, meio Bahia, comendo prego a arrotando caviar. tem alho, sal, pequi e acarajé na minha vida meus caros. Mas tem um amigo que diz o seguinte: "continua andando. senão vão pensar que tú morreu". Eu? Continuo andando. Poetando, esculpindo, e bebendo uma cerveja (que ninguém é de ferro).



2-)O seu livro de poesias Entre o alho e o sal , quanto deste trabalho tras a você as lembranças do Cariri?



Entre o alho e o sal é Cariri até o tutano. Pra quem vê o livro, pode até parecer só um livro de poesia. Mas pra mim? é um álbum de fotografias. Tem serra, tem floresta, tem água, tem bar de ponta de esquina, tem mulher, tem paixão, tem pé na bunda, tem experiência com drogas buenas e nem tanto, tem livros lidos, filmes vistos e amigos queridos. eu, e tudo que faço, é tudo Cariri. O resto?É lenda pessoal.



3-)Como foi sua experiência como editor de fanzines?Sente saudades deste tempo?



O fanzine se chamava "séquiço sacro". Nome e sobrenome de porrada. Era uma luta braçal "literalmente", mas, puta que pariu!!! Como era bom cara. Os blogs de hoje são sensacionais, mas não são nem a sombra do que foram os fanzines. Tenho saudade cara!!! Datilografar, recortar, colar... porra! Como éramos jovens. Como éramos belos com nossos sonhos de mudar o mundo. O fanzine cara, foi a literatura experimental mais importante dos anos 80 e 90. Exagerado? Como não ser escutando Cazuza?


4-)E suas experiências com a musica e a noite ?



A música entrou na minha vida pela mão da poesia. Eu era o cara esquisito que escrevia, e os caras eram o "remédio anti-monotonia". Nos juntamos e fizemos rocks ingênuos e nem tanto. Tão bonitos que sobreviveram a nós todos. A música ainda hoje tem um papel absolutamente importante na minha vida. Daí, que "leio" Lenine, Zeca Baleiro, Chico César e todos os outros luminares da M.I.B (música inteligente brasileira) sem esquecer de Tom Zé né véio? Que é o papa da pop poesia visceral e verdadeira.



5-) Escrever , sem dúvidas o melhor remédio para nós os doentes deste mundo destroçado O que Lupeu esta aprontando para os leitores?



Estou seguindo o conselho do Gustavo cabeção (o amor é uma coisa feia) estou na luta com o teclado pra escrever um romance, e continuo enlouqueçendo no meu blog: "séquiço sacro", e escrevendo algumas coisas no "cariricult" (precisam ver isso cara!!! o cariricult é a bíblia do cariri). Enfim: Ofício de escritor cara. Se a gente não escreve pira. Ou vira pira. pega fogo geral.



6-)Um recado do Lupeu para quem curte boa literatura?



Dêem uma chance aos novos. Guimarães Rosa, Drummond, Ferreira Gullar... Todos esses caras já foram principiantes. Já escreveram primeiros livros, já erraram pra caralho até acertar. Então? Em sua próxima saída, passe em uma livraria, olhe lá na seção "novos autores", com certeza vocês vão achar alguma coisa - muita coisa - muito boa. Daí, compre um vinho baratinho, acenda um cigarrinho, escute um sonzinho... E boa viagem.



Lupeu Lacerda. Autor de Entre o alho e o sal , também das as caras no blog http://cariricult.blogspot.com/ e em seu blog http://sequicosacro.blogspot.com/

quarta-feira, 17 de outubro de 2007

PORTEIRA

"Meu canto, lugar algum onde posso encimesmar.Aqui donde olho indeciso pro lado onde quero como quem olha ao longe um carro-de-boi, em sua eterna cantiga".

Eis que a porteira se abre...

Assim,meio sem tino sigo pela vereda.Um som longínquo se desprende da tarde.Uma revoada de pássaros ruma para o sul, sem destino certo.Sob a mira de caçadores, ocultos por entre os arbustos, seguem.

A aquarela cinza e laranja compõe a tarde que se desfaz da luz .Uma luz que grita espessos raios por entre o emaranhado de nuvens acinzentadas. Posso ver por entre o exército de capim.Dançando sob o comando do vento.A tarde desce...

Os primeiros golfos negros da noite se desdobram, e a casa e seu candeeiro, emitindo o sinal de que estou chegando. Porteira aberta, o cheiro do café surgindo da cozinha e invadindo impunemente minhas narinas, tão acostumadas ao cheiro do gado e da lida de terra.

Sempre amei esta lida, sina de todos os que trazem nas veias o sangue aquecido pelo sol destas paragens.E me aquieto ,no silêncio da noite a escutar os grilos fazendo sua festa de escuro e som...



Georgio Silva.Pequena prosa poetica, ou algo assim.Há algum tempo haviamos cogitado a possibilidade de publica-lo no "Entre Aspas".Resisti por muito tempo mesmo.Hoje este texto amanheceu em minha mente, com o nascer do sol. Algumas cabras tocando cincerros na frente da casa...Postei.Espero que gostem.

domingo, 14 de outubro de 2007

Encastelados (Resgate – Lapa) Um conto de Gustavo Rios.

Estou num ônibus lotado. Muito calor. Tem um pivete vendendo balas a um real, aceita vale. Do meu lado uma garota lê com atenção um livro do Cioran. Lá fora, outdoors tentam me convencer que minha vida vale a pena. Se eu tiver um tênis Nike e camisas Lacoste. O motorista não tá nem aí. E acelera. O ruído constante do motor incomoda. Sinto calor. Quero chegar em casa. Minha camisa ensopada de suor, tô um caco. Existem frases surgindo em minha cabeça agora. Mais um livro que vai morrer. Não tenho como anotar as frases. O ônibus balança. O motorista acelera. Pela janela leio algo sobre a felicidade num clube de veraneio. Um outdoor. São doze prestações e “voilá!”, seja feliz meu irmão! Simples assim, seja feliz. Pague as prestações e afogue-se na piscina do clube. No meu rosto acho que tem um riso. Meio insano é verdade. Penso em drinks exóticos. E garotas dançando Ula-Ula para mim. Tem lá no clube. É só pagar. O pivete vende balas, aceita vale. Pede pra eu comprar só para ajudar. Eu não tenho grana. Alguém lá atrás manda o pivete ir estudar. Que aquilo não é vida. A garota do livro de Cioran parece em transe. Vejo que o pivete tá com fome. Bastante fraco. Eu ainda tô suado. O motorista continua firme. Ultrapassando os sinais vermelhos. Choveu na cidade hoje. Pequenas poças de água no chão refletem a felicidade dos outdoors. A felicidade do tênis Nike. E das camisas Lacoste. E do clube com as garotas do Ula-Ula. Simples assim. É só pagar. O ônibus balança. Sinto cansaço. O motorista acelera. A garota continua a ler. Ela chora agora. Um choro convulsivo. Estranho. O pivete vende balas. Aceita vale. Eu tô sonhando com tênis Nike. E com as gostosas do Ula-Ula. A garota ainda tá chorando. Ninguém ouve. Mais um sinal vermelho. A chuva volta. Os vidros embaçam. Quem quer comprar balas, aceita vale. O ruído do motor. Minha cabeça roda um pouco. Cansaço. Mais um sinal vermelho. O pivete tá com fome, eu sei, eu sei, ele vai desmaiar. Ele não tá agüentando. A garota arranca as páginas do livro. O motorista acelera. O motor faz barulho. As pernas do pivete vacilam. Isso foi numa curva. Mais um sinal vermelho, tênis Nike, Ula-Ula, camisas Lacoste, Cioran. O pivete cai no chão, olhos fechados, a garota agora come as páginas do livro, o motorista acelera, o pivete tá com fome, a garota mastiga as páginas do livro, eu quero ser feliz, o motorista sonha com sinais verdes, o pivete no chão e as balas espalhadas, a garota devorando o livro com lágrimas nos olhos e a boca cheia, na cabeça do motorista sinais verdes, na minha tênis Nike, camisas Lacoste e Ula-Ula, a garota agora mastiga a capa do livro, o pivete no chão tá desmaiado, sinais verdes e Ula-Ula e Cioran e balas e poças de água e outdoors e felicidade e camisas Lacoste e o motor ruidoso e tênis Nike e livros sendo mastigados e engolidos e suor e chuva e vidros embaçados e alguém lá atrás, sossegado, batucando um pagode de verão.

GUSTAVO RIOS É autor de O AMOR É UMA COISA FEIA, e mantem o blog http://www.cozinhadocao.blogspot.com/. Conto inédito.

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

POUCAS E BOAS...Com...

LIMA TRINDADE


1-Como você vê o desenrolar da literatura aqui na Bahia?


Vejo sob duas perspectivas distintas, a de quem produz a literatura mais especificamente, ou seja, aqueles que escrevem, e a dos agentes que estão ligados a ela indiretamente, os livreiros, professores, editores, jornalistas, políticos... No primeiro caso, creio que a literatura baiana vai muito bem. A cada dia que passa me deparo com um maior número de jovens escrevendo contos, poemas, romances, cordel, etc. São pessoas já com uma determinada bagagem, razoável conhecimento dos clássicos e mente aberta para o novo. E há escritores não tão jovens, com vários livros publicados, algum reconhecimento nacional, mas com muito ainda a dizer ainda. Falo exclusivamente dos escritores radicados aqui, evidentemente. Já quanto à realidade da literatura na Bahia não sou tão otimista. Não há grandes estímulos para absorção da cultura literária no Estado. Para começar, não temos uma única editora representativa no estado. Uma que agregue nomes, publique, distribua e divulgue a produção contemporânea. É assustador. Pernambuco, nesse quesito, está seguindo o bom exemplo dos estados sulistas. Lá, eles criaram um esquema em que a literatura local é prestigiada e consumida. Basta ver o excelente trabalho que a editora Bagaço está fazendo. E o espaço ideal para a absorção desta literatura é a escola. Para você ter uma idéia, há autor que vendeu mais de 100.000 exemplares de um único livro. O Maurício Mello Júnior é um deles. Então, meu caro, não se pode dizer que literatura não se vende, que só tem leitor quem publica no eixo Rio-São Paulo. A questão é pensar a nossa realidade local. Juntar todos os interessados e criar soluções práticas com esse intuito. Recentemente, li uma entrevista com o Secretário de Cultura em A Tarde, o sr. Márcio Meirelles, e havia vários entrevistadores. Quem era de música, cobrava ações para música. Quem era de artes plásticas, discutia a situação das artes plásticas. Teatro... Contudo, para o meu espanto, ninguém sequer resvalou no problema da literatura. Isto não é revelador? E a literatura deveria estar no cerne da discussão. A palavra atravessa as demais expressões artísticas, quer se queira quer não. Quando ela não está presente na obra, é dela, a palavra, que se utiliza para se aproximar receptor e objeto. O domínio da língua e dos sentidos que a linguagem cria interfere diretamente na sensibilidade e acuidade crítica, na capacidade de percepção do indivíduo. O problema é sério
2-Você mantêm uma revista literária eletrônica chamada VERBO 21. O meio digital gera novos autores e divulga os já existentes. É fácil administrar esta onda estando a frente de uma Revista?

Não há uma intenção definida. Para mim, pouco importa se um autor é conhecido ou desconhecido, se é neófito ou escolado, o que importa, dentro da Verbo21, é o texto e a capacidade de articular idéias. Se você observar, buscamos ocupar um espaço de atuação artística em acordo com o nosso tempo, o que pode significar uma não adesão a determinadas linhas de pensamento hegêmonicas, um questionamento ao poder e ao discurso oficioso. Basta conferir, por exemplo, o material de nossas colunas. Discutimos desde questões ecológicas até subjetivades cambiantes, política e sexualidade, cinema e cotidiano.

3-Em seu conto publicado na IARARANA 13 "Com ou sem chantilly?” Você cita Hemingway algumas vezes. Ele certa feita afirmou que escrevia a lápis para não corromper o estilo. Hoje com o advento do computador, internet, qual a sua opinião a respeito do estilo? Estas "facilidades" deturpam o estilo dum escritor? E você como lida com isso?
O estilo, a meu ver, jamais será prejudicado pelo suporte ou ferramenta. O estilo está relacionado com um burilamento interior. Pode vir de modo "fácil", como a autopsicografia de Pessoa, ou "difícil", como o método de Flaubert. A questão é de autoconhecimento. E jamais cair em maneirismos. Eu não sei dizer qual é o meu "estilo". Deixo a tarefa para os críticos.
4-Vários dos seus contos trazem a temática do jovem, sobretudo do jovem escritor,o que você diria a um escritor iniciante?

Estamos na mesma luta, irmão! (risos)... Quando encontro escritores ainda mais jovens do que eu, mais verdes, digo a eles que leiam muito, estudem muito e escrevam sem parar, pois só a prática leva ao aperfeiçoamento.

5-Qual o autor ou autores você traz como referencial no gênero conto?

Inúmeros. Machado, Lima Barreto, Cortázar, João do Rio, Tchecov, Clarice Lispector, João Antonio e Caio Fernado Abreu são alguns deles.
LIMA TRINDADE,Salvador, Autor e editor da revista eletrônica http://www.verbo21.com.br/. "Supermercado da solidão" (novela) e "Todo o Sol mais o Espírito Santo" (contos). LANÇOU DIA 09 DE OUTUBRO DESTE ANO EM SÃO PAULO O LIRVO:CORAÇÕES BLUES E SERPENTINAS

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

MAIS UMA POETISA ....

SINUOSIDADES



quando vi sua hesitação, eu já sabia
é que tenho jeito de moça pura
e cara de mulher vadia

por via das dúvidas, você, cauto,
convidou:
que tal um sorvete e alguns livros de poesia?

adorei a idéia
linda tarde a nossa

quando veio a noite, sugeri qual uma
dama:
que tal uma cachaça nas curvas da cama?


pra nossa delícia, baby
meu prazer tem mais vias que suas dúvidas


POR:Raiça Bomfim

terça-feira, 9 de outubro de 2007

CONVITE

LIRE EN FÊTE - ANO II

Pelo segundo ano consecutivo, a Aliança de Salvador organiza o “LIRE EN FÊTE” ou “A FESTA DA LEITURA”, entre os dias 18 e 24 de outubro (exceto domingo). Na programação estão incluídos três eventos principais: feira de livros, mesa de discussão e leitura dramática de O Burguês Fidalgo realizada pela Trupe de teatro da Aliança da Aliança, sob direção de Isabela Silveira e Lucas Valentim.

Encontro que acontecerá no dia 23 de outubro de 2007, às 19 horas.


domingo, 7 de outubro de 2007

LANÇAMENTO


CLICK NA IMAGEM PARA LER O CONVITE

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Natan Barreto: a palavra do poeta

O poeta baiano Natan Barreto, 40 anos, radicado em Londres, desde 1992, esteve de volta a Salvador, onde lançou seu livro Esconderijos em Papéis, na terça, dia 18, na Saraiva do Salvador Shopping. Na entrevista a seguir, ele fala um pouco sobre o que significa a poesia em sua vida, o processo de criação e a experiência de ser um estrangeiro em terras distantes. Confira!
POR :Márcia Ferreira Luz
1) O que significa a poesia para você?
Natan Barreto - Para mim, a poesia é um modo particular de observar e perceber o mundo, tentando fixá-lo através de palavras. Nisso há uma vontade latente de tornar permanente o que é efêmero. Esses instantes passageiros, que tanto podem fazer parte do mundo real quanto do mundo imaginário, ao ganharem forma de verso, ganham vida própria, podendo mesmo se encontrar justapostos à realidade concreta, quando, ao serem lidos, o leitor tem acesso à visão particular do poeta.
2- Como é seu processo de criar poesias?
NB - Num primeiro momento, gosto de escrever frases soltas, que podem ou não dar origem a versos e acabar virando poesia. Para isso, ando sempre com papel e caneta no bolso, e durmo sempre com papel e caneta ao lado da cama. Essas primeiras anotações, às vezes, são esquecidas na gaveta para serem relidas muitos meses mais tarde. Mas há momentos em que essas observações passam a me acompanhar. Nisso, o meu trabalho se assemelha à criação de um mosaico ou de um quebra-cabeça. A única diferença é que as peças vão sendo feitas à medida em que o poema é realizado. Já ocorreu de eu escrever poemas rapidamente, em poucas horas. No entanto, geralmente preciso de tempo, dias, semanas ou meses. Gosto de me dedicar ao ato de reescrever, de editar, cortar, acrescentar. Mas chega um momento em que é necessário aceitar a poesia escrita, com suas limitações, e deixá-la partir. Aí a poesia passa a não me pertencer. Uma vez publicados, não tenho interesse em reescrever meus versos. Parto para outros, a serem escritos.
3- Qual a poesia que você gostaria de ter escrito?
NB - Seria difícil dizer uma só. São tantos os poetas que admiro e muitas as poesias que gostaria de ter escrito. Mas vou dizer duas. Uma delas é “Morte do Leiteiro”, de Drummond. Lembro-me de que, adolescente, eu gostava de ouvir um disco no qual Drummond e Vinicius liam suas poesias. Até hoje tenho uma fita gravada com a voz desses dois grandes poetas brasileiros. Esse objeto já está em minhas mãos há mais de 20 anos. É o objeto mais antigo que trago comigo. A outra poesia é “Soneto da Fidelidade”, de Vinicius. Tenho lido e estudado sonetos, com o desejo de escrever um livro só de sonetos. Escrevi uns poucos apenas e não são muito bons; ainda estou longe de dominar essa forma poética. Espero um dia chegar lá.
4- Na sua opinião de poeta, por que ainda existe uma certa resistência contra esse gênero?
NB - Por ser mais curta, a poesia é mais densa do que a prosa. Isso faz com que algumas pessoas se afastem dela, até porque a poesia requer uma maior dedicação. Ainda assim, acho necessário desafiar essa percepção, pois embora realmente exista a poesia de difícil acesso, há também poemas extremamente simples e nem por isso menos belos.
5- Você mora há muitos anos fora do Brasil, em que essa experiência influencia na sua escrita?
NB - Acho que em tudo. Talvez eu não tivesse começado a escrever se não tivesse me tornado estrangeiro. Os idiomas aprendidos, os lugares visitados e deixados para trás, as pessoas encontradas, os amores vividos e perdidos, a morte além-mar de meus pais, tudo isso contribuiu e formou a minha poesia. Foi na Europa que eu deixei de ser ator para me tornar escritor. É na Europa que eu escrevo, não no Brasil. Chego a pensar que preciso estar na Europa para escrever sobre o Brasil. Aqui eu armazeno percepções que só lá consigodestilar.
6- Mário Quintana escreveu, certa vez, que fazia poemas para se salvar. Você escreve para quê?
NB - Acho que todo escritor deseja deixar sua marca, como se lutasse contra a morte, como se quisesse se comunicar com futuras gerações. Acho que escrevo por querer tornar eterno o que é efêmero. Mas também escrevo pelo simples prazer de brincar com as palavras.
7- Você acabou de escrever um romance. Como foi essa experiência?
NB - A experiência de escrever um romance foi longa, solitária, árdua e prazerosa. Quando comecei a escrevê-lo, não pensava que seriam necessários quase 10 anos para terminá-lo. Ainda bem que não, pois se eu soubesse disso, talvez eu nem tivesse começado. Faço questão de dizer que não me considero um romancista. Escrevi apenas um romance, por achar que tinha uma história para contar. Não sei se terei outras histórias para contar em forma de romance. Acho difícil. Afinal de contas, para um escritor lento como eu, chegar a 300 páginas requer muito tempo. Vejo-me sim continuando a escrever poesias. E gostaria muito de escrever peças e roteiros, o que comecei a fazer no início dos anos 90, quando morei em Paris. Uma outra dificuldade que me impus foi ter decidido escrevê-lo em inglês. Inglês não é minha língua-mãe, o que fez o processo ficar ainda mais lento. Ainda assim, embora tenha sido árdua a experiência de escrever um romance, ela também foi muito prazerosa. Quase todos os dias havia alguma frase, algum parágrafo, alguma cena que eu gostava. Era isso o que me fazia prosseguir. Além disso, depois de começado o livro, seria uma grande covardia não terminá-lo. Lembro-me dos seguintes versos de Luís de Camões, em Os Lusíadas: “Não tornes por detrás, pois é fraqueza/ Desistir-se da cousa começada.”
8- Você acredita que o Natan Barreto poeta se expõe mais do que o Natan romancista?
NB - Antes de tudo, acredito que não há como um escritor não se expor, por mais que tente. Claro que uns se expõem mais do que os outros. Como poeta, eu me permito falar de aspectos íntimos de minha vida. Nisso há uma grande exposição sim. Como romancista, acredito ter me exposto muito, pois a história que eu contava era, em parte, autobiográfica. No entanto, ter escrito o romance em inglês, me deu a distância necessária para tratá-lo como ficção. Talvez só ao traduzi-lo para o português tomarei consciência de que esse não era bem o caso. De qualquer forma, devido à linguagem mais direta do romance, acredito ter me exposto mais ao escrevê-lo do que quando escrevo poesias.
9- Dizem que o poeta enxerga o mundo com olhos mais românticos. Você acredita nisso?
NB - Não acredito que o poeta dedique às coisas um olhar necessariamente romântico. Acho sim que o poeta busca perceber o outro lado das coisas, o lado nem sempre exposto. Nisso ele pode até desenvolver uma percepção romântica. Mas poderá também acabar se tornando até mais realista do que antes do mergulho poético, devido a uma compreensão maior do mundo. O importante é que busque uma verdade sua, por mais aparentemente fictícia que essa possa ser ou parecer aos outros.
10- Quais são os poetas que você tem lido ultimamente?
NB - Tenho lido a poesia de Elizabeth Bishop, uma poetisa americana que morou muitos anos no Brasil, nas décadas de 50 e 60. Ela foi uma excelente tradutora de poetas brasileiros para o inglês. Traduziu Vinicius, Drummond, Cecília Meirelles e João Cabral de Mello Neto divinamente. Tenho lido também a poesia do grande poeta americano, Walt Whitman. É dele a epígrafe do meu livro. Há pouco tempo, li também Decifração de Abismos, um ótimo livro do poeta alagoano que reside em Salvador, José Inácio Vieira de Melo. Li também o belo livro O Olhar Inventa o Mundo, da poetisa baiana Cacilda Povoas, que também escreveu uma peça de muita importância no momento atual, O Muro.

sábado, 29 de setembro de 2007

Um poema de Idmar Boaventura

Retrato

Mil velas apagadas
luzes
que não são mais que
Que cinza
e dores.

E somos os mesmos
(a sombra e a noite),
os mesmos desde ontem,
ainda que mudados –
pois estamos perdidos
por estes caminhos rudes.
E estamos com medo
E cegos.

E percebemos mil velas apagadas
como quem percebe um rio
quando não há rio
e ouve o som das águas
e, em silêncio
aguarda.

Aguarda .

Idmar Boaventura é poeta, mora em Conceição do Jacuípe. Mestre em Litaratura Brasileira pela UEFS. Tem publicado o livro "O desossar (d)as horas.

quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O olhar estrangeiro de um poeta baiano*




(Foto crédito - Dimitri Vicenzi).


Quando decidiu trocar Salvador pela Europa, em 1990, Natan Barreto, que morou até os 19 anos no subúrbio de Periperi, não imaginava que essa experiência fosse transformá-lo num escritor apaixonado pela poesia. Atualmente, residente em Londres, ele retorna à capital baiana para lançar "Esconderijos em Papéis", seu segundo livro de poesias. A publicação, que ganha lançamento no dia 18 de setembro, às 19 horas, na livraria Saraiva, no Shopping Salvador, reúne 63 poesias, escritas ao longo de seis anos com o cuidado de um artesão. "Acho que o meu olhar de estrangeiro, de quem teve que aprender outros idiomas e ver o mundo novo e o mundo que havia deixado para trás com outros olhos, me fez o poeta que sou", conta ele.

Os versos de Natan nasceram e se consolidaram a partir do silêncio. Isso tem uma ligação direta com a outra atividade artística do baiano: a interpretação. Após graduar-se em teatro pela Uni-Rio, ele foi morar em Paris. Para ganhar algum dinheiro por lá, posava como modelo para pintores e desenhistas da Escola de Belas-Artes, especialistas em nu artístico. "Foi um tempo de silêncio. Passava até três horas imóvel e sem roupa. Nisso comecei a pensar frases, que ainda não eram versos, mas que já começavam a ser mais do que prosa", recorda.

Quando pisou em Paris, ele queria lapidar o francês que havia começado a estudar na Aliança Francesa, no Rio de Janeiro, cidade onde morou por quatro anos. Buscava outras formas de se sustentar, pois não queria atuar, devido a um recente medo do palco. No entanto, acabou co-escrevendo o roteiro e atuando em dois curtas-metragens, em Paris. Além disso, trabalhando como modelo, ele não conseguiria fugir totalmente da interpretação, já que dependia da expressão para ser retratado.

"Acho que se houve uma transição entre o ator e o poeta, foi naquele período", comenta. Ali começava a nascer o poeta, que registrava no papel essa experiência de ser estrangeiro, além da necessidade latente de se esconder. Daí o nome do livro "Esconderijos em Papéis". "Na poesia que dá título ao livro, falo do ato de se esconder por trás do papel do ator e no papel escrito. Até que ponto você pode realmente se esconder? No palco, a exposição por trás do papel de um personagem me incomodava. No papel poético, me exponho também, mas no momento que alguém lê meus poemas, eu já não estou ali, estou invisível, muito mais escondido do que no palco", diz.

Em algumas poesias do novo livro, editado pela Editora Kalango, aparece ainda um tema que se impôs a Natan de uma maneira muito forte em um curto espaço de tempo, a morte. Recentemente, ele perdeu uma tia, a mãe, e por último, o pai. Afetos e amores que o traziam a Salvador a cada ano.

Em homenagem à mãe, ele também fará o lançamento do livro na Escola Modelo Eunice Palma, que pertencia a ela. Já no dia 25, retorna a Londres, onde haverá mais um lançamento da publicação.

Na capital britânica, Natan atua como tradutor e intérprete. Além disso, coordena, desde 2000, o projeto "Encontros Poéticos", voltado para a divulgação da poesia e de poetas de língua portuguesa, tendo se apresentado na Embaixada do Brasil em Londres, em festivais literários, museus e universidades inglesas. Entre seus autores preferidos estão nomes como Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Mello Neto e Vinicius de Moraes, além do poeta francês Arthur Rimbaud e do americano T. S. Eliot.

Apesar de ser radicado em Londres, 99% das poesias de Natan são escritas em português. Ele julga que em inglês sua expressão poética não tem a mesma força da língua-mãe. Dentre as poucas poesias escritas no idioma britânico, ele destaca duas: “Ruínas” e “A casa em chamas”. Foram inspiradas em fotografias do brasileiro Sebastião Salgado para ilustrar a exposição "Migrações", feita pelo fotógrafo em Londres, no ano de 2003. Foram convidados 15 poetas ingleses e um único poeta brasileiro, Natan. Na exposição, o texto acompanhava a foto, mas também podia ser ouvido na voz gravada do autor. "No entanto, acredito que a minha poesia verdadeira seja a que escrevo em português", salienta.

Sobre o autor - Natan Barreto nasceu em 1966, em Salvador. Graduou-se em Interpretação Teatral pela Uni-Rio. Além de Londres, onde reside desde 1992, morou também em Paris e Roma. Seu primeiro livro de poesias, "Sob os Telhados da Noite", foi lançado em 1999. Há dois meses, ele finalizou seu primeiro romance, que, aliás, levou dez anos para ser escrito devido à rigidez em busca da qualidade. O autor chama isso de um trabalho solitário.

"Fico horas olhando cada verso, cada palavra, cada vírgula. Reescrevo muito meus textos. Tem alguém que disse que se você quer ser relido, então, reescreva", frisa. Os originais já estão em uma editora londrina, mas o autor adianta que, muito provavelmente, este deverá ser o único da carreira no gênero, pois se vê mesmo escrevendo poesias, além de querer retomar a produção de roteiros. As poesias de Natan Barreto também farão parte de uma publicação, que será editada, até o final deste ano, pela Universidade Federal de Minas Gerais. A coletânea contará com a participação de autores brasileiros que vivem em países estrangeiros. A edição será bilíngüe e lançada no Brasil e nos países nos quais moram os escritores.
*POR MÁRCIA FERREIRA LUZ


Serviço: Esconderijos em Papéis (poesias)Editora Kalango
Autor - Natan Barreto
Lançamento - 18 de setembro de 2007, às 19 horas
Local - Livraria Saraiva / Shopping Salvador (3363-4308)
Preço sugerido - R$ 20
Mais informações: Márcia Ferreira Luz - jornalista(71) 8834-0857


Esta semana estarão postados aqui três poemas do autor.





domingo, 9 de setembro de 2007

POUCAS E BOAS...

BEM, CAROS LEITORES.
A NOSSA REVISTA, EM SUA MISSÃO DE GARIMPAR O QUE DE NOVO HÁ FEITO AQUI, OU POR GENTE DAQUI ESPALHADA PELOS QUATRO CANTOS DO MUNDO, TRÁS MAIS UMA DAS SUAS: A NOVA SÉRIE DE ENTREVISTAS ENTITULADA POUCAS E BOAS, NUMA TENTATIVA CLARA DE POR, PARA VOCÊ LEITOR, O SUMO DO NOSSO TRABALHO. E PARA ABRIR ESTA SÉRIE, RENATA BELMONTE RESPONDE AS POUCAS PERGUNTAS COM BOAS RESPOSTAS. ENFIM, BOA LEITURA PARA TODOS.
EQUIPE "ENTRE ASPAS"
Entrevista-concedida à Georgio Silva


“Entre Aspas”- Muitos dos seus contos tem um ambiente cromático e musical bem presente. Já pensou em adaptar alguma de suas histórias para um roteiro de cinema?

RENATA BELMONTE: Um dos meus grandes sonhos é trabalhar com cinema. Confesso que já pensei muitas vezes em transformar alguns dos meus contos em roteiros. Apenas não o fiz porque não conheço pessoas da área e não sei como poderia viabilizar tal projeto. Mas isso não significa que estou fechada para a idéia. Muito pelo contrário, penso sempre no assunto. Quem sabe nos próximos anos não surge uma boa oportunidade?


"Entre Aspas”- - Como surgiu a idéia do blog?

RENATA BELMONTE: O Vestígios da Senhorita B. é fruto de uma intensa busca pessoal. Nos últimos tempos, estava insatisfeita com minha vida e comecei a sentir necessidade de produzir algo que trouxesse alegria para o meu cotidiano de forma rápida e instantânea. E isto o meu blog tem me proporcionado. Nele, exercito minha escrita, publico contos curtos, democratizo o acesso aos meus textos e relembro biografias de pessoas relevantes. Através do olhar sobre outro, acredito que cresço enquanto ser humano. Ademais, ter este projeto paralelo está me fazendo muito bem. A interação com o leitor e a possibilidade de falar sem ressalvas sobre assuntos que me são caros, são apenas alguns dos pontos positivos do Vestígios.


"Entre Aspas”- - Como encara a literatura e mundo? Simetria? Assimetria ou fusão?

RENATA BELMONTE: Tudo que escrevo reflete a minha constatação de que as regras deste mundo não são coerentes. No meu universo literário, há uma intensa busca por uma lógica de vida diferente da usual. Para meus personagens, não existem limites óbvios entre o real e o imaginário. Afirmações como “isso não existe” ou “isso é impossível” não cabem nos meus contos. Acho que a minha literatura nada mais é do que o meu grito de incompreensão. Faço perguntas a Deus através dos meus personagens. E, enquanto não recebo as suas respostas, permaneço escrevendo. Esta é a forma que encontrei de sobreviver sem perder a delicadeza.

"Entre Aspas”- - Há algo novo de Renata Belmonte prestes a sair em livro?


RENATA BELMONTE: Sim, faço parte da antologia de contos Outras moradas que será lançada em outubro pelo Banco Capital.


"Entre Aspas”- - Leituras, Sem censura, Soterópolis... Como é estar a desfiar sobre você e sua escrita diante das câmeras?


RENATA BELMONTE: As duas experiências foram incríveis. Logo depois dos programas, recebi um monte de e-mails de leitores interessados em adquirir meus livros. Sempre é bom vivenciar novas coisas, conhecer pessoas interessantes, respirar uma atmosfera diferente. Fiquei muito grata pelos convites. Eles foram boas oportunidades de divulgação do meu trabalho.

"Entre Aspas”- - A internet e a literatura em simbiose, como Renata explica suas incursões na teia digital?


RENATA BELMONTE: Meu primeiro conto foi publicado na Internet. Lembro-me perfeitamente da alegria que senti ao receber um e-mail da Leila Miccolis falando sobre este meu trabalho. Colaborei muito com o Blocos on line, dentre outras revistas eletrônicas. A Internet foi o primeiro espaço que me acolheu e me deu legitimidade. Segui em frente porque recebi boas respostas dos meus leitores virtuais. A rede foi muito importante para a construção da minha auto-estima enquanto artista.

"Entre Aspas”- - Como você vê esta galera nova que mergulha na literatura, sobretudo se utilizando de mídias digitais?


RENATA BELMONTE: Eu acho ótima essa renovação. Não gosto muito da idéia de grupos e acho importante que surjam novas e independentes vozes literárias. Apenas penso que as facilidades de publicação na Internet não devem atrapalhar o ofício do escritor. Constantemente, navegando pela rede, leio textos ainda muito imaturos e sem nenhum cuidado formal. Acho que devemos avaliar com cautela o que publicamos. Todo trabalho literário precisa de um tempo de amadurecimento. E nem sempre ele é compatível com a velocidade da rede.


"Entre Aspas”- - Você é leitora voraz. Fale de um(s) livro(s), um(s) filme(s) e um(s) poema(s) que não podem faltar entre suas preciosidades?


RENATA BELMONTE: Desde que li o primeiro parágrafo do livro O amante, me apaixonei. Marguerite Duras foi definitivamente um dos meus melhores encontros literários. Quase todas as noites, antes de dormir, substituo minhas orações pelas palavras dessa grande autora. Já quanto ao filme, escolho Encontros e Desencontros (Lost in Translation). Esta história de amor sem romance é uma das maravilhas do cinema contemporâneo. Gosto tanto que a epígrafe de O que não pode ser é dele. Por último, trago este verso da Hilda Hilst: “Se eu soubesse de nuvens, Como te sei, Não diria o que disse, Nem faria o poema. Olhava apenas.” No meu último aniversário, ganhei alguns livros de poesia dela. E me encantei com todos. O poema citado pertence ao Da Morte. Odes Mínimas que é absolutamente sublime, maravilhoso.



"Entre Aspas”- - O que você perguntaria a RENATA BELMONTE, ou o que você não perguntaria?


RENATA BELMONTE: Eu não me perguntaria o que eu, além de escrever, pretendo fazer na vida. Todos os dias me faço esse questionamento e não encontro nenhuma resposta satisfatória.

quarta-feira, 5 de setembro de 2007

Cachorro morto em noite chuvosa

sou de uma raça de cachorro ruim
desassossegado pelo sangue que
brota das noites-incompletudes escorrendo
em angústias esquivas
sou de uma raça de cachorro mau
nauseado pela lua opiada nas
madrugadas latejantes de desejos lascivos
bebendo peçonha tumultuando
os jardins com excrementos perversos.
então escancaro uma
réstia lanosa de lágrima
quando me queimo em tua lua segredada
quando substancialmente o animal
estúpido cura sua compaixão.


NELSON MAGALHÃES FILHO nasceu em Cruz das Almas - BA. É artista plástico formado pela Escola de Belas Artes da UFBa, onde foi professor substituto de pintura. Premiado nas Bienais do Recôncavo, nos Salões Regionais de Artes Plásticas, em 1999 ganhou o Prêmio Copene de Cultura e Arte (atual Braskem). Publicou poemas no Jornal A Tarde, Leia (SP), Revista Exu, Reflexos, etc.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

SILÊNCIO, POR FAVOR

Ouvira num lugar qualquer a palavra “dissensão”. E essa palavra se fixara em sua mente, acompanhando-a e sendo usada quando havia necessidade de falar algo muito importante e grave. Faltava-lhe critério para uso do termo, não dominava a língua culta, não concatenava as idéias de forma que pudesse dizer o tudo que sentia de forma clara e com um sutil toque de charme e melancolia que tanto gostava (imaginava-se como uma atriz daqueles filmes “cult” franceses que um dia Assistiu num desses cinemas de cadeiras desconfortáveis).
Seu namorado, possuidor de certo conhecimento, desse de teses, dogmas e similares, reclamava freqüentemente de sua incapacidade de falar coisas proveitosas, das artes, das questões filosóficas e de outras aflições do tipo, enquanto ela pensava na palavra mais bela que um dia escutou. E distraía-se olhando para o nada; suas pupilas fixas e imóveis, enquanto ele falava e falava e falava. Depois, ela abria as pernas. Fazendo-o esquecer dos falsos tormentos. Dizia sacanagens, em seu linguajar coloquial-quase-chulo (não gostava de labirintos e filosofias, mas o amava e tinha medo de perdê-lo).
Em sua mente, só a tal palavra. Tão linda e forte, uma palavra robusta, valorosa: dita por ela, uma merdinha insignificante, frouxa e dispensável. E lembrava dela, da palavra. E da vida, de seu sincero sentimento, chorando de dor e felicidade, enquanto com agulha e linha (os olhos em lágrimas, as perfurações em seus lábios), costurava a própria boca, para poder amar seu homem em silêncio.


GUSTAVO RIOS nasceu em 1974. É baiano e mora em Salvador. É autor do livro de contos O amor é uma coisa feia, lançado pela editora 7 letras. Escreve regularmente nos blogs www.cozinhadocao.blogspot.com e http://feioamor.zip.net.