terça-feira, 17 de abril de 2007

"Perfil"(2)

A louca e a lua

Achavam na rua que ela era louca. Não trabalhava, não estudava, não tinha família e falava muito pouco ou quase nada, somente quando lhe perguntavam alguma coisa e ainda assim com uma voz tão baixinha que quase ninguém a escutava. Comia o que lhe davam de caridade na igreja e vivia contente assim, andando e olhando pro céu, como se quisesse voar, como se fizesse parte do mundo lá de cima e não desse aqui. E tinha um estranho hábito: catava carteiras de cigarros que ia encontrando pelo chão ou no lixo. Um dia as pessoas da cidade resolveram fazer uma festa em comemoração ao padroeiro São Jorge: seria uma festa com missa, quermesse, procissão, feirinha de artesanato e até uma peça de teatro com o santo guerreiro e o dragão brigando na lua. Ela pediu para fazer parte da apresentação e riram dela. Insistiu tanto e aquilo era tão uma novidade que as pessoas aceitaram sua participação na peça (já que na quermesse, na missa ou na feira ia ser mesmo difícil achar alguma tarefa pra ela fazer). Ela assistiu aos ensaios calada, sem dizer palavra, com um sorriso de mãe de deus estampado na alma. Nem deram por sua presença. No dia da festa, no meio da confusão que fervia na cidade – isso eu nunca vou esquecer –, um silêncio de pedra tomou conta de todos, foi uma revelação, quase uma epifania: era ela, aquela mesma mulher, agora tão radiante e linda, meu deus, que apareceu na praça vestida de lua, com uma fantasia feita com o papel laminado das carteiras de cigarro. A cidade nunca mais foi a mesma. Dizem até que naquele dia São Jorge venceu o dragão e desceu do céu, no rabo de uma estrela, para agradecer.

Adelice Souza (1973), nasceu em Castro Alves -BA. Mora em Salvador. É graduada pela Universidade Católica do Salvador em Comunicação Social e em Direção Teatral pela Universidade Federal da Bahia, onde atualmente leciona Dramaturgia e Preparação do Ator. Como diretora, dirigiu os espetáculos “O Beijo no Asfalto” (1997), “Hamlet-Machine”(1997), “A Balsa dos Mortos”(1998), “De Alma Lavada”(1999) e “Red não é vermelho” (2001) e "Na Solidão dos Campos de Algodão"(2004). “De Alma Lavada” e "Na Solidão dos Campos de Algodão" receberam três indicações ao Prêmio Copene de Teatro. Dirigiu também o Palco Maracangalha na 53 SBPC Cultura. Como autora e diretora dirigiu “Fogo Possesso”(2005) e “Metamorphos-In”(2006), adaptação de “A Metamorfose”, de Franz Kafka. Ganhou o Prêmio Copene de Literatura 2001 com o livro de contos “As camas e os Cães”, premiado também pela União Brasileira dos Escritores(RJ) com o Trofeu Jose Alejandro Cabassa como o melhor livro de contos publicado em 2001.Em 2003 e 2004 ganhou o Concurso de Contos Luiz Vilella. Em 2003, venceu o Concurso de Contos do Banco Capital, que publicou o seu segundo livro "Caramujos Zumbis". Em 2005, integrou a coletânea da Ed. Record, organizada por Luiz Ruffato, "As 30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira".

2 comentários:

Daniela Rodrigues disse...

Lindo. Perfeito. E dolorosamente tocante.

Anônimo disse...

Olha quem eu achei!! Mais uma obra de arte... Adorei!!