Estou num ônibus lotado. Muito calor. Tem um pivete vendendo balas a um real, aceita vale. Do meu lado uma garota lê com atenção um livro do Cioran. Lá fora, outdoors tentam me convencer que minha vida vale a pena. Se eu tiver um tênis Nike e camisas Lacoste. O motorista não tá nem aí. E acelera. O ruído constante do motor incomoda. Sinto calor. Quero chegar em casa. Minha camisa ensopada de suor, tô um caco. Existem frases surgindo em minha cabeça agora. Mais um livro que vai morrer. Não tenho como anotar as frases. O ônibus balança. O motorista acelera. Pela janela leio algo sobre a felicidade num clube de veraneio. Um outdoor. São doze prestações e “voilá!”, seja feliz meu irmão! Simples assim, seja feliz. Pague as prestações e afogue-se na piscina do clube. No meu rosto acho que tem um riso. Meio insano é verdade. Penso em drinks exóticos. E garotas dançando Ula-Ula para mim. Tem lá no clube. É só pagar. O pivete vende balas, aceita vale. Pede pra eu comprar só para ajudar. Eu não tenho grana. Alguém lá atrás manda o pivete ir estudar. Que aquilo não é vida. A garota do livro de Cioran parece em transe. Vejo que o pivete tá com fome. Bastante fraco. Eu ainda tô suado. O motorista continua firme. Ultrapassando os sinais vermelhos. Choveu na cidade hoje. Pequenas poças de água no chão refletem a felicidade dos outdoors. A felicidade do tênis Nike. E das camisas Lacoste. E do clube com as garotas do Ula-Ula. Simples assim. É só pagar. O ônibus balança. Sinto cansaço. O motorista acelera. A garota continua a ler. Ela chora agora. Um choro convulsivo. Estranho. O pivete vende balas. Aceita vale. Eu tô sonhando com tênis Nike. E com as gostosas do Ula-Ula. A garota ainda tá chorando. Ninguém ouve. Mais um sinal vermelho. A chuva volta. Os vidros embaçam. Quem quer comprar balas, aceita vale. O ruído do motor. Minha cabeça roda um pouco. Cansaço. Mais um sinal vermelho. O pivete tá com fome, eu sei, eu sei, ele vai desmaiar. Ele não tá agüentando. A garota arranca as páginas do livro. O motorista acelera. O motor faz barulho. As pernas do pivete vacilam. Isso foi numa curva. Mais um sinal vermelho, tênis Nike, Ula-Ula, camisas Lacoste, Cioran. O pivete cai no chão, olhos fechados, a garota agora come as páginas do livro, o motorista acelera, o pivete tá com fome, a garota mastiga as páginas do livro, eu quero ser feliz, o motorista sonha com sinais verdes, o pivete no chão e as balas espalhadas, a garota devorando o livro com lágrimas nos olhos e a boca cheia, na cabeça do motorista sinais verdes, na minha tênis Nike, camisas Lacoste e Ula-Ula, a garota agora mastiga a capa do livro, o pivete no chão tá desmaiado, sinais verdes e Ula-Ula e Cioran e balas e poças de água e outdoors e felicidade e camisas Lacoste e o motor ruidoso e tênis Nike e livros sendo mastigados e engolidos e suor e chuva e vidros embaçados e alguém lá atrás, sossegado, batucando um pagode de verão.
domingo, 14 de outubro de 2007
Encastelados (Resgate – Lapa) Um conto de Gustavo Rios.
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Um comentário:
Gustavo, muito bom mesmo. Dá um curta-metragem. Grande abraço. Parabéns para a Revista "Entre Aspas", cada vez melhor.
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