O argumento
P/ Mayrant Gallo
“ Tenho um argumento de Borges”, disse.
“Como?, perguntei”
“Tenho um argumento de Borges”, disse sentencioso.
Ouvi perplexo aquela confissão, muito mais pela imaginação que pela veracidade do fato. Para dar continuidade aquela conversa sobre literatura, livro, ficção, perguntei:
“ Como conseguiu?”
“ O próprio Borges me deu”.
“Não sabia que havia conhecido Borges?”
“ Deu-me em um de nossos encontros em Buenos Aires”.
“ A tarde era cinza (creio recordar) passeava pelo parque de simetrias labirínticas, lá encontrei Borges.
“ ’Esperava-o’, disse-me, 'escolhi esta tarde em Buenos Aires. Poderia ter sido Genebra, Veneza ou Pequim'. E entregou-me uma folha de papel amarelecida.
Peguei o papel e saí. Sabia que já não haveria diálogo, já havia acontecido e aconteceria.
No segundo encontro falamos das pombas e da prova da existência de Deus. No último perguntei: ’Mas... porque eu?’ `Se não fosse você, seria outro. Um homem é todos os homens. As páginas de Chesterton escrevi-as eu e o Xá da Pérsia, as páginas que escrevi, escrevestes tu e tuas páginas escreveria um outro`.
Guardei o argumento dentro do caderno de anotações e o conservei ali, intacto. Voltei ao Brasil, tempos depois soube que Borges voltara à eternidade. Desde então, aguardei nosso encontro futuro.”
Ouvi o relato quieto, imaginando se não seria mais uma de suas ficções que tendia para o fantástico.
Nos vimos mais duas vezes. Na primeira enumerou-me dez escritores universais: Camus, Machado, Rosa, Cortázar, Márquez, Kafka, Hemingway, Kosztolányi, Conrad e Borges. E mais alguns poetas: Safo, Vilariño, Rilke, Drummond, Bandeira, Káfafis, Baudelaire, Quintana, Vinícius, Rimbaud.
Os pombos comiam tranqüilos a nossa volta. Disse (creio recordar): “ Um pombo, todos os pombos. A frase parecia uma questão medieval.
No ultimo encontro, não disse nada. Tentava fixar, por instantes, alguns rostos que passavam, compreendi que aquele seria nosso último encontro. Deixei-o na praça esperando a eternidade. Tempos depois, uma pequena nota no jornal noticiava sua morte.
Recordava nosso encontro (ou acreditava recordar) naquela praça em Salvador, os pombos e os rostos que tentava fixar. Me perguntava se não havia sido um sonho ou se não éramos personagens de algum de seus contos. Daqueles encontros, restou-me esta folha de papel amarelecida.
Esperava... o arrulhar dos pombos e rostos que passavam inventavam a tarde.
Paulo André Correia (1978). Mora em Picado. Co-editor do Blog.
Um comentário:
querido paulo, poderia ficar aqui tirando onda e cheio de bla bla bla. mas prefiro dizer que tá do caralho. gosto dessa onda. corte e etc. finais singelos. onde tudo se insere.
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