terça-feira, 30 de outubro de 2007

Um conto de Mayrant Gallo

A MÁQUINA DO DR. K.

Desde o início, soube que usaria a máquina. De nada adiantou protelar sua decisão. Isso apenas permitiu a colaboração indireta da esposa, que o rejeitou na cama e pela manhã saiu sem aviso. Sua imaginação fez o resto. Essa gota de oceano o empurrou mais cedo para a máquina. Num fim de tarde nublado, dirigiu-se ao prédio decadente e sondou a existência do obscuro Dr. K., o inventor e primeiro explorador do inconcebível artefato.

A partir de então só pensou na máquina e nas vantagens asseguradas: novo rosto, novo corpo, outra personalidade. E com isso outra vida. Todavia, era preciso não se iludir: a transformação tornava as pessoas apenas outras pessoas, mas em tudo iguais a quaisquer outras. Os hábitos, embora novos, continuavam os mesmos, coerentes com a espécie. A transformação obedecia, por um lado, ao gosto do usuário e, por outro, a uma fórmula já consagrada pela própria vida. Foram estes, em suma, os prós e os contras expostos pelo Dr. K. A última condição era: uma vez transformada, a pessoa não podia voltar atrás e, por conseguinte, só poderia se submeter a uma nova transformação oito anos depois. Tal exigência não era de natureza contratual, mas fisiológica, uma limitação do corpo humano...

Nos dias que se seguiram, organizou-se como se fosse partir em viagem de férias. Despedia-se, era evidente. A esposa se surpreendeu. Ele consertou todos os eletrodomésticos parados havia meses e, sem nunca ter manuseado antes um pincel, retocou as paredes manchadas pelo desespero de ambos. Também poliu os móveis e saiu em busca de novos suportes para as cortinas dos banheiros. Os reparos em sua vida íntima não foram poucos: passou a acordar mais cedo e convidar a esposa para caminhar, e a ir com ela às compras, quase interessado ou pelo menos em silêncio, a observar sua destreza em escolher e avaliar os produtos, respeitando sua natureza retraída e cautelosa. Fatos assim, se recorrentes, dispensariam a máquina...

No trabalho, livrou-se diligentemente de todas as pendências. Desengavetou antigos projetos e, atualizando-os, deu-lhes nova forma, redação mais precisa, livre de ambigüidades. Em duas semanas, o chefe o congratulou pelo entusiasmo dos últimos dias. Naquela tarde, saíram e se conheceram melhor. Quase se tornaram amigos. E marcaram uma pescaria, à qual levariam, ele a esposa, e o chefe a jovem namorada. Estavam bêbados e, por isso mesmo, mais íntimos, sem reservas. Chegou tarde em casa, mas ainda assim a esposa o esperava, afável e excitada. Prolongaram-se na cama, rindo e conversando. Depois lancharam e voltaram a se amar. O sol subia no horizonte quando afinal adormeceram, esquecidos dos sombrios temores dos últimos meses.

O segundo encontro com o Dr. K. aconteceu, apesar da felicidade que agora o contemplava. Com a esposa, era como se tivessem voltado aos primeiros dias. Transformada, ela por muito pouco não retomara aquela fisionomia inicial, que lhe tirava o sono. Mesmo assim, não mudou de idéia. Seguia por trilhos sem volta. O Dr. K. o obrigou a preencher uma enorme papelada e em seguida, tendo chamado sua jovem assistente, o introduziu na sala onde estava a máquina, uma alta cápsula metálica, de superfície uniformemente lisa, com duas imperceptíveis portas, uma de cada lado. Afora isso, nenhum botão, qualquer mecanismo. Aparentemente, a operação se concretizava mediante controle remoto. De fato, nas mãos tanto da assistente quanto do doutor havia um bastão da mesma cor azul-metálica da cápsula e repleto de botões. A um gesto do doutor, uma das portas se abriu, para cima. A assistente o pegou pelo braço e conduziu até o interior da cápsula. No exíguo compartimento não havia nada, exceto o ar sufocante e asséptico. Enquanto usuário, ele teria que ficar de pé ali, entre quatro paredes, e esperar... Então adormeceria e, como num sonho, antes de cair, despertaria do outro lado, outro. O processo não consumia mais que dois minutos, garantiu a moça, com uma voz de veludo e um sorriso provocante. Quando fez menção de deixá-lo, ele protestou: "Não".

"Não?", ela disse, surpresa.

Não estava preparado.

"Ninguém jamais estará", filosofou o Dr. K.

Abandonou o estreito compartimento. Durante o tempo que esteve ali suas mãos passearam pela lisa superfície metálica. Assim vira, certa vez, num filme antigo, um homem tocar os livros na estante. Espécie de despedida ou de reconhecimento de um universo ou instante já perdidos ou por esquecer, brevemente... O súbito roçar da morte, talvez, ou o despertar para um incerto mundo de sensações. A verdade era que ali, naquela espécie de ataúde, ele iria desaparecer em breve, e para sempre. Seu último ato nesta vida.

"Eu sei", disse, com um considerável atraso e no tom vazio e hesitante de alguém que a vida inteira foi um tímido, um inadaptado. "Amanhã, sem falta."

Naquela tarde foi visitar a mãe no asilo. E talvez se despedir. Não foi difícil: a velha, diante da tevê, se assemelhava a um peixe impassível dentro do aquário. Emanava indiferença e fleuma. Não era o filho que estava ali, mas um homem qualquer, estranho. O lábio inferior, caído, acentuava-lhe a expressão de desdém e alheamento. Comiserado, ele puxou uma cadeira e se interpôs entre a mãe e a tevê. Para seu assombro, a mulher continuou a olhá-lo como se ele fosse uma extensão do aparelho. E mesmo quando ele o desligou ela não esboçou nenhuma reação. A definitiva ausência de vida útil a suprimira de si mesma. Restava-lhe agora fundir-se à noite... Esta certeza o esmagou.

A esposa o procurou na cama, mas, pela primeira vez desde que se conheciam, ele a recusou, com elegância e uma contenção sexual incomum nos homens. Sem rancor, ela se virou e adormeceu, em segundos, dissolvida na exaustão. De seu lado, ele já ia sonhando, sonhando e sendo absorvido. O Dr. K. e sua assistente os receberam sem ânimo, os gestos bruscos e automáticos. Quando afinal a moça lhe perguntou, friamente, quem desejava ser, ele ficou prostrado, sem palavras. Não concebia a vida como uma escolha senão obscura, indefinida, do acaso...

"Vem", a moça disse, puxando-o delicadamente. "Não importa. É sempre assim, com todos..."

MAYRANT GALLO. Publicado , 03/09/2006, no Correio da Bahia, com uma "hipercorreção" do inteligente revisor do jornal, que estragou o conto. Esta é a versão correta.

Um comentário:

anjobaldio disse...

O Mayrant é muito bom. A revista está massa. Abração para todos.