FIM DE LINHA
I
Logo que o ônibus despontou no horizonte turvado de fuligem, Nelson fez sinal. O estômago queimava. Investiu na última tragada de um cigarro que ameaçava queimar-lhe também a ponta dos dedos amarelados. Abriram-se duas covas nas proeminentes bochechas, apertaram-se os olhos amendoados.
Era o último cigarro da última carteira. Quando muito se espera em filas, as tragadas são mais fundas e rápidas.
Antes, costumava reclamar do banco. Os clientes chegavam no seu caixa, de quando abria até fechar, e lhe jogavam os depósitos, cheques, fichas de compensação e contas, um após o outro. “Muito obrigado, senhora”. “Um instantinho, por favor”. “Como tem andado?”. “Não se incomode, eu preencho pro senhor”. “Olhe, está faltando quinze”. “Um minuto, não tenho troco pra cem, vou pegar noutro caixa”. Dentro, não podia fumar.
Agora que estava livre do banco, ou, melhor dizendo, que eles haviam se livrado dele, não dispunha de mais dinheiro para comprar cigarros. Além do dinheiro da passagem, só restaram vinte e cinco centavos do seguro-desemprego. O suficiente para comprar um picado, não fosse o cego ter-lhe suplicado o trocado. Desajeitado, não teve como se esquivar. “Cego maldito!”, pensou com raiva.
O ônibus surgiu e parou mais à frente de onde estava. Nelson jogou a guimba ao chão e se arremessou num trote frouxo para dentro.
O sol declinava no vidro do pára-brisa e, como num jogo de espelhos, se duplicava nos grossos óculos do motorista. Em breve, anoiteceria.
Estendeu os olhos mais para o interior. Os passageiros que estavam em pé formavam uma colorida aléia de ternos, jeans e saias. Girou a roleta sem olhar para o cobrador, deixou o vale-transporte como espremido das mãos e, abrindo espaços, zuniu até um assento vazio, no fundo. “Que sorte!”. Hesitasse, outro teria tomado o lugar. Sentado, sentiu irreprimível felicidade, tão cheio estava de um monte de coisas que se acumulavam e o privavam de pensar em si mesmo, ficando tudo com um gosto de desgosto, nem amargo, nem doce, porque dele não se acentuava nada, como se a sua vida não tivesse importância e ele não desse importância para a vida. A mulher que pensava amar, amava a um outro. E ele nem mesmo acreditava que ela amasse aquele babaca de verdade. Que era um babaca e tinha carro e casa própria. Na verdade, um apartamento no qual ele dizia comer uma porrada de meninas. Nelson, um cara sem lar e sem emprego, poderia dar algo de si para alguém? Algo que não fosse sua falta de vontade e inépcia em considerar o mundo? É bem verdade que lar ele tinha, apesar de não ser de fato seu, mas alugado. Setenta por cento do seguro-desemprego era gasto em aluguel. E quando alugamos algo, aquilo passa a ser nosso enquanto pagamos. Pensava nisso quando seus olhos pesaram e ele começou a dormir, levado pelo carretel de pensamentos. O chouto do ônibus o embalava.
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II
Despertou com a sensação do corpo formigando e a surpresa de não estar mais em movimento. As sombras lentamente abandonavam seus olhos, recaíam tímidas nos assentos. Percebeu-se só. Primeiro, o sentimento de embaraço. Depois, o esforço para localizar-se. “Idiota”, sussurrou para si. Em seguida lembrou que o mesmo já se sucedera com outras pessoas, que muito vira e rira das pessoas que adormeciam nos coletivos. O pescoço pendendo sobre o ombro ou sobre o peito e o rosto estampando uma feição ridícula. Levantou. Ainda não escurecera totalmente, tudo afigurava-se sem contornos, apagado, fugidio. A paisagem misturava-se à sujeira das janelas e se perdia em pontilhados e manchas.
O ônibus não estava em nenhuma estação, em nenhuma rodoviária, em nenhum estacionamento. Simplesmente parara numa clareira. Quatro ruas a cercavam e formavam um quadrado, perto uns cem metros uma da outra. Como nunca seguira aquela linha até o seu final, ficou a pensar que lugar seria aquele e onde poderiam estar o motorista e o cobrador. Certamente voltariam. O ônibus deveria ter quebrado, os passageiros levados para outro veículo e o motorista seguido atrás de um guincho. Mas se assim era, porque ninguém o acordara para acompanhá-los?
Ficou quinze minutos sentado, fazendo conjecturas. Finalmente resolveu sair, decidido a tomar nova condução para casa. Forçou suavemente as portas traseiras e pôs-se em liberdade.
Fora, pode observar as ruas com maior atenção.
Eram rigorosamente iguais. O chão era de uma terra acinzentada batida e as casas todas de alvenaria. As cores, de um tédio mortal. Apenas uma janela e uma porta de madeira pintadas de verde compunham as fachadas. As paredes, brancas. Não se viam plantas ou adornos quaisquer que as distinguissem. Também não havia postes de luz próximos, nenhuma iluminação artificial. Nelson sentiu-se também nu e rapidamente percorreu o corpo com os olhos.
Usava uma calça jeans azul bem desbotada, uma camisa de algodão branca com botões e um tênis barato, sem meias. Talvez fosse por isso que não conseguira a vaga de digitador no escritório da W&W, não bastava sua extrema velocidade no teclado.
Começou a andar e se meteu numa das ruas, disposto a encontrar um ponto qualquer, já que tudo lhe parecia sempre impessoal e repetitivo.
Nisso, viu aproximar-se um senhor de aspecto bem bonachão, de barba e bigodes. Sorriu ao notar que o estranho se vestia parecido com ele, apesar de apresentar alguma diferença nos detalhes. Usava uma calça de tergal clara, talvez bege, e uma camisa azul com botões aberta na barriga, deixando entrever o orifício do umbigo. O calçado era um sapato mocassim muito desgastado. Não obstante, sentiu-se seguro para lhe pedir informações.
Articulou a primeira frase e esperou por uma resposta. O senhor, sem mesmo parar, fitou-o, mudo. Uma grossa lágrima rolou pelo rosto macerado, embebendo o bigode meio ensebado e grisalho e deixando Nelson em estado de estupor.
“Que porra é essa?!”, sacudiu a cabeça ligeiramente aturdido, ao passo que o senhor se distanciava. “Será surdo?... Maluco?”.
Continuou em frente.
A rua estava sombria e solitária. Uma luz pálida e rala bruxuleava de uma janela, exibindo a silhueta distorcida duma pessoa como num filme de Murnau. Era uma velha. A parca luz denunciava um semblante grave e austero. Trazia um lenço vermelho à cabeça e apoiava o queixo com uma das mãos, enquanto a outra se espalmava sobre a testa. Era uma testa por demais enrugada, e uma face inteiramente escalavrada. Nelson sentiu-se velho também. A voz dele escorregou num fiapo de interrogação. “Dona, que lugar é este? É bairro novo? Não vi nenhuma placa”. A velha se manteve indiferente. “Como posso fazer para pegar um ônibus?”, acrescentou sem vontade. A mulher arregalou as pálpebras finas e moles e, numa expressão mais que melancólica, mais que tristonha, deixou cair uma lágrima sobre o rosto estático, frio e copiosamente sulcado. Esta gota, tão rala e magra, salgou o coração de Nelson e fê-lo achar o ambiente e as ruas mórbidos. O desespero de não compreender aquela dor gratuita, magna e impenetrável, misturou-se às escuras tendências de Nelson para uma lugubridade interior. Se continuasse a ver aquela face tétrica da morte, desfaleceria ali mesmo. Fugiu numa urgência presa e oprimido pelo terror da visão horrorosa.
Desse modo, correu. Correu e correu por outras ruas idênticas àquelas, que agora emitiam um odor pestilento. Crianças perambulavam em algumas delas, e, mesmo as crianças não brincavam ou esboçavam menor sinal de alegria. Ficavam laconicamente paradas ou seguiam os adultos como robôs.
Evitando de olhar uns para os outros, aquelas almas aprisionadas causaram a impressão a Nelson que ele talvez estivesse morto, ou que a loucura houvesse se abatido sobre ele e estivesse ainda no ônibus em que subira. Lutava para achar uma explicação e não conseguia.
Aflito, de todos que ousou inquirir recebeu a mesma dolorosa e inexpugnável lágrima. Tornou-se um desgraçado como os demais. Não se aventurou mais a olhar para ninguém, contentou-se resignadamente com o seu destino tortuoso. E, assim, desfila pelas gretas daquela terra cinzenta. Se uma outra vítima do misterioso carro vem do crepúsculo e lhe toca nervosamente o ombro, ele apenas se vira para ela e deixa que a gota sulfurosa lhe queime a face machucada.
LIMA TRINDADE, brasiliense radicado em Salvador, é escritor e editor da revista virtual Verbo21(www.verbo21.com.br). Autor da novela Supermercado da Solidão (LGE, 2005). Conto extraído do livro Todo Sol mais o Espírito Santo (Ateliê Editorial, 2005).
2 comentários:
Li esse texto na noite passada, antes de dormir. Sonhei que acordava nesse lugar de gente que não fala. Tô com medo de dormir hj.
Parabéns pela revista, pela sobriedade visual e diversidade dos autores estampados, sem sectarismos de qualquer tipo. Vida longa e sucesso à "Entre aspas".
Abraços
Sandro
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