quarta-feira, 23 de maio de 2007

Um quase-conto de um quase-escritor

RICARDO BELMONTE

Breve consideração:

Certo dia, em tom de brincadeira, ele me entregou uma folha de papel e disse: se eu quisesse ser escritor, seria muito melhor que você. Ele é moreno, eu sou loura. Quando criança, ele gostava de morcegos e rãs, enquanto eu, adolescente, me preocupava com roupas e festas. Ele é o neto preferido de meu avô, eu sou a neta favorita de minha vó. Ele sempre se recusa a ler meus livros, mas eu, felizmente, agi diferente diante daquela sua primeira “obra”. E, no dia de hoje, seu aniversário, publico este seu conto. Ou esta sua primeira e última tentativa de conto, como ele diria. Faço isso por talvez desejar tê-lo como companheiro nesse mundo tão mágico e estranho em que vivo: a literatura. Ou apenas por orgulho mesmo. Porque, afinal de contas, ainda sou sua irmã mais velha.

Renata Belmonte



Pedro


É cedo, mas Pedro prefere o desconforto de levantar ao de se submeter à tortura mental que seus pensamentos costumam lhe oferecer ali, enquanto permanece enrolado nas cobertas. Hora difícil aquela. As atividades mais simples se tornavam extenuantes. E, embora não fosse ele um leitor inveterado, Kafka havia lhe avisado: o primeiro crepúsculo era um martírio. Reverência inócua esta, avaliou segundos depois. Não era preciso rememorar o escritor tcheco para chegar a tal conclusão. Qualquer um poderia ter constatado isso. E, recentemente, um grande amigo tinha lhe dito o mesmo de forma ainda mais atual e verdadeira.

Desta vez, no vaso, não se sentiu melhor, como costumava ocorrer na infância. Sabia que as dezessete horas que se seguiriam não seriam menos desafiadoras. Agora se divertia tentando adivinhar os motivos que levaram Chico e Raul a fazerem músicas tristes com seu nome. Pedro significava 'pedra', leu certa vez no papel informativo que acompanhava sua refeição, numa dessas grandes redes de lanchonete. Lembrou-se que não tinha nada o que comer. Mesmo morando sozinho, sempre esperava que alguém fizesse seu café-da-manhã.

Já na cozinha, permitiu-se fritar ovos para uma omelete. Ora, não era justo, tampouco coerente, um desjejum com pão seco e café ralo, não era desses que gostam de incrementar a tristeza. Além do mais, sua condição financeira não beirava o desespero. Pôs o terno bege como ele e apertou o colarinho - com a mesma falta de habilidade de ontem e anteontem – e, empenhou-se em se indignar com as notícias ruins do jornal do dia, como fazem matinalmente as pessoas nas padarias. No entanto, não obteve êxito em sua tentativa. Seu aparato emocional era raso demais para se incomodar com problemas de ordem maior. Após tal previsível constatação pôs-se a imaginar a presença de um animal doméstico imaginário – quem sabe um cão – e reproduziu onomatopéias imitando a despedida diária de seu bicho adorável.

No último girar da chave, sorriu com a possibilidade de ser invadido por novos desatinos no decorrer do dia que se seguiria. Além do animal, passou também a idealizar a presença de uma namorada naquele apartamento. Nem linda, nem feia, nem estúpida, nem genial, apenas uma namorada. Contudo, sua euforia não fora capaz de durar muito e a imagem dos dois seres vivos que acabara de criar dissiparam-se subitamente como aqueles balões brancos e macios dos desenhos animados. No meio do caminho, já assumindo a condição de homem solitário, ultrajou, silenciosamente, um casal adolescente. Quis odiar um pombo que pousou sobre uma banca de revistas ou qualquer outra coisa estapafúrdia, tal como fazem, ou fingem fazer, os escritores nervosos. Bobagem, disse para si mesmo, não havia motivos para tanto.

Já ao trabalho, percebeu que nos seus devaneios não constavam a presença de filhos. Por um segundo, buscou até compreender o motivo de tal ausência Depois, desistiu. Isso não era um desses mistérios que demandavam longas análises psicológicas, apenas não pensou em filhos e ponto. Bastava para ele ter sua vida preenchida por si mesmo. A ausência de proeminências, intensidades, labirintos, entusiasmos, descobertas, reminiscências, proficiências, bolos de chocolate, 'feliz dia dos funcionários públicos' ou 'esse país vai afundar de vez', lhe era determinante. Ponderou sobre o que, por acaso, lhe fazia falta. Quase nada, disse para si mesmo. Decidiu se sentar na cadeira. E abriu satisfeito um pacote de biscoitos.


RENATA BELMONTE nasceu em 13/03/82, é advogada e autora de Femininamente (2003) e O que não pode ser (2006). É irmã de Ricardo Belmonte.

RICARDO BELMONTE nasceu em 23/05/86 e é estudante de direito. Pedro é o único quase-conto que quase escreveu na vida. É irmão de Renata Belmonte.



8 comentários:

Anônimo disse...

A tortura mental do acordar, o quis odiar, a ausência de entusiasmos, tudo isso é muito doído e muito a cara de Ricardo Belmonte.

E como mera leitora (mentira, como fã absoluta dele), "quase-escritor" foi modéstia pura.

Ah, e ele não é lindo?

Anônimo disse...

Que legal, Renata, incentivá-lo desse jeito. Isso é muito bom. Quem sabe ele não toma gosto pela coisa e continua escrevendo?
E parabéns Ricardo, pelo seu "quase-conto" (rs) e pelo seu aniversário.

O interessante é que temos quase a mesma idade, fazemos o mesmo curso e também me arrisco a escrever de vez em quando...
Ah, e eu adorei essa expresão "quase-escritor"... rs...
Beijos, Daniela.

Vivz disse...

"Ponderou sobre o que, por acaso, lhe fazia falta. Quase nada, disse para si mesmo".

Tô passando mal de inveja.

Anônimo disse...

Obrigada pelo carinho, amigos!
Abraços,
Renata

Anônimo disse...

Pelo visto, e lido, a literatura está no sangue dos Belmontes.

Anônimo disse...

O moço tem futuro. Parabéns! O comentário da irmã, especialmente, me emocionou. Muito lindo!

Anônimo disse...

Esse negócio de "quase" é pura modéstia. Os irmãos são extremamente talentosos, essa é a verdade. Um abraço, Ângela.

Anônimo disse...

Agradeço ao site, minha irmã e todas as pessoas que fizeram comentários pela atenção e incentivo.
Abr,
Ricardo